João Tancredo – Escritório de Advocacia

10 anos depois, a dor das famílias das vítimas de voo da Air France: ‘Para cada morto, 5 vidas destroçadas’

Notícia Externa

André Bernardo – BBC News Brasil – 31/05/2019

Em menos de 24 horas, o engenheiro Renato Machado Cotta, então com 49 anos, passou do momento mais feliz de sua vida – o casamento da única filha – para o mais trágico: a notícia da morte dela.

A médica Bianca Machado Cotta, de 25 anos, e o marido, o procurador federal Carlos Eduardo Lopes de Mello, de 33, eram dois dos 228 mortos, sendo 12 tripulantes, no acidente do voo 447 da Air France, no dia 1º de junho de 2009.

Os dois estavam a bordo em viagem de lua de mel para a França. “Perdi um pedaço de mim. Toda vez que acordo ou vou dormir sinto que falta algo. Não há um único dia em que eu não pense nela”, conta o professor da Coppe/UFRJ.

Considerado um dos modelos mais modernos e seguros, o Airbus A330 que levava o casal caiu, em meio a uma tempestade, quando fazia o trajeto entre o Rio de Janeiro e Paris.

Uma das causas do acidente foi o congelamento dos tubos de pitot, os sensores de medição de velocidade que ficam na parte de fora das aeronaves.

Obstruídos por cristais de gelo, que se formaram na altitude de 10.600 metros, pararam de funcionar às 2h10. “Até então, 32 pilotos, 11 deles da Air France, tinham relatado congelamento no tubo do pitot. Infelizmente, nada foi feito. Se alguma providência tivesse sido tomada, essa tragédia não teria acontecido”, afirma o engenheiro.

Dentro da cabine de comando, os copilotos David Robert, de 37 anos, e Pierre-Cedric Bonin, de 32, perderam o controle da aeronave e não souberam mais o que fazer. Com o desligamento do piloto automático, entre outros instrumentos de navegação, Bonin teve que assumir a pilotagem manual em altitude elevada.

Com 2.936 horas de voo, o mais inexperiente dos três pilotos a bordo cometeu uma série de erros. O mais grave foi executar uma manobra arriscada que levou à perda de sustentação da aeronave. Por volta das 2h14, o capitão Marc Dubois, de 58 anos, que tinha ido descansar em um compartimento apelidado de “sarcófago”, voltou à cabine. Era tarde demais.

“Não houve falha técnica. Só erro de pilotagem”, defende o escritor e piloto militar aposentado Jean-Pierre Otelli, de 71 anos. “Do momento da obstrução do pitot até a queda da aeronave no mar, se passaram 4m24s. Neste curto intervalo de tempo, o alarme sonoro de ‘estol’, avisando a perda de sustentação, tocou 75 vezes e ninguém fez absolutamente nada”, explica o autor de Erreurs de Pilotage (Erros de Pilotagem, em tradução livre), o quinto volume de uma série sobre desastres aéreos.

‘Rastro de destruição’

Autor de quatro livros sobre aviação – Caixa-Preta (2000), Plano de Ataque (2006), Perda Total (2011) e Voo Cego (2017) -, o escritor Ivan Sant’Anna, de 79 anos, explica que quando o avião está “estolando”, ou seja, perdendo sustentação, o piloto tem que “enfiar o nariz para baixo”.

Com isso, vai ganhar velocidade e recuperar a sustentação. “Por incrível que pareça, os dois copilotos tentaram levantar o ‘nariz’ para evitar que ele caísse. Como o avião estava em posição de ‘estol’, ou seja, caindo com o ‘nariz’ para cima, ele não ia subir nunca. Fizeram uma barbeiragem sem tamanho”, define o escritor.

Pelo horário da queda, os passageiros já teriam terminado de jantar e muitos já estariam dormindo. A hipótese mais provável é que as vítimas tenham morrido com o impacto do avião no mar.

Dos 216 passageiros a bordo, de 32 países, 59 eram brasileiros. Por pouco, muito pouco mesmo, o engenheiro Nelson Marinho Filho, de 40 anos, não perdeu o voo que saía às 19h29.

Segundo funcionários da Air France, ele chegou atrasado ao Galeão e foi o último a embarcar. Estava viajando a trabalho para a Itália. “Já perdi pai, mãe e irmão. Mas a dor de perder um filho não tem igual”, afirma o aposentado Nelson Faria Marinho, de 76 anos, que tatuou no braço o rosto do filho morto.

“Aquele acidente deixou um rastro de destruição. Para cada passageiro ou tripulante morto, temos quatro ou cinco familiares que tiveram suas vidas destroçadas”, calcula Marinho, que é presidente da Associação dos Familiares das Vítimas do Voo AF447, que reúne 53 famílias.

Boa parte delas, estima Nelson, não recebeu indenização. “Por questões contratuais, não podemos revelar valores. Podemos até ser processados”, diz.

Na época do acidente, 15 famílias foram representadas por um advogado e todas já foram indenizadas por danos morais e materiais. Em muitos casos, os parentes optaram por fazer acordo com a seguradora da companhia aérea.

Buscas no mar

Por determinação da Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), o governo francês, país onde a aeronave estava registrada, ficou responsável pelas investigações e o brasileiro pela busca dos corpos e resgate das vítimas.

Marinha e Aeronáutica resolveram suspender as buscas 26 dias depois de iniciada a operação. Neste período, contaram com 12 aviões e 11 navios, e resgataram 51 corpos, muitos deles afivelados às poltronas, e mais de 600 peças da fuselagem. Nelson conta que só conseguiu sepultar os restos mortais do filho dois anos e meio depois da tragédia.

Em maio de 2011, o governo francês decidiu fazer uma última missão de resgate, avaliada em 30 milhões de euros. O içamento do corpo do rapaz e de outros 102 passageiros e tripulantes em uma gaiola vazada só foi possível graças ao robô submarino Remora 6000.

De fabricação americana, é capaz de mergulhar a quatro mil metros de profundidade e numa temperatura próxima a 2ºC. Foi ele, a propósito, que resgatou, por entre os destroços do avião, as duas caixas-pretas: uma com o gravador de voz do cockpit e a outra com gravador digital de dados de voo, como altitude e velocidade.

“Encerradas as buscas pelo governo francês, os corpos de 74 vítimas, sendo 23 brasileiras, continuam no fundo do mar”, lamenta Nelson.

Em julho de 2012, o Escritório de Investigações e Análises de Acidentes Aéreos (BEA, na sigla em francês) divulgou um relatório final, de mais de 300 páginas, sobre a queda do avião.

Nele, o órgão do governo francês responsável por investigar desastres aéreos e propor medidas de segurança aponta uma combinação de erros de avaliação dos pilotos, com problemas técnicos ocorridos por congelamento dos sensores de velocidade, os tubos de pitot, como as causas do acidente.

Outros fatores foram o mau gerenciamento da situação e condições meteorológicas ruins. Os peritos apresentaram, ainda, recomendações para evitar que outras tragédias aconteçam.

“Em tese, todo e qualquer acidente pode ser evitado”, explica o consultor em segurança aérea, Luís Cláudio Lupoli, do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), que participou da elaboração do relatório.

“Um dos aspectos que mais chamaram minha atenção foi a necessidade de treinar os pilotos para interagir de maneira eficiente com sistemas automatizados. Além disso, a tripulação precisa estar sempre com a habilidade psicomotora em dia para controlar manualmente a aeronave, sem o auxílio da automação, em situações de emergência.”

Culpado ou inocente?

Outra investigação sobre a tragédia do voo 447 terminou em março. O resultado, se a Justiça não pedir novos laudos, será apresentado em setembro. O objetivo da vez não é corrigir falhas ou propor soluções e, sim, apontar culpados.

A expectativa das famílias é que tanto a Air France quanto a Airbus sejam acusadas de homicídio culposo.

O administrador de hotelaria Maarten Van Sluys, de 49 anos, que perdeu a irmã, a jornalista Adriana Francisca Van Sluys, de 40, na tragédia, não acredita nisso. A assessora de comunicação da Petrobras estava viajando para a Coreia do Sul a trabalho.

“Prefiro não criar expectativas e ser surpreendido positivamente a alimentar esperanças e me decepcionar depois”, explica.

Dez anos depois, Maarten garante que a fase da revolta já passou. O que sobrou foi saudade.

Para se sentir mais perto da irmã, se engajou numa causa humanitária: viajar a lugares como Chapecó, em Santa Catarina, ou Kuala Lampur, na Malásia, e prestar solidariedade a parentes e amigos de outras vítimas de desastres aéreos.

“Quero manter viva a memória da minha irmã. Por essa razão, decidi fazer o que ela faria se estivesse viva: levar esperança a quem perdeu um ente querido em circunstâncias tão trágicas”, afirma Maarten.