Publicado em Revista Fórum – 18/07/2020
O Tribunal de Justiça de São Paulo iniciou o mês de julho condenando autores de vídeos homofóbicos e recheados de discurso de ódio a pagar R$ 80 mil de danos morais coletivos, em Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública, que deverão ser revertidos para políticas de ações afirmativas que visem promover a igualdade e o combate às diferentes formas de discriminação. A Defensoria havia pedido a remoção dos vídeos do ar, a retratação dos autores e o pagamento de R$ 500 mil a título dano moral coletivo.
Um dos vídeos começa com os dizeres “Olhe, cara, sabe aquelas situações em que você SABE o que quer fazer, mas não tem CORAGEM de fazer?”. Em seguida, são mostradas as seguintes situações: personagem dá um soco na barriga de sua namorada gestante, provocando um aborto; filho que “vomita” fogo e mata sua mãe queimada, após ela confessar o seu ofício de prostituta; pai que, de arma em punho, atira no estômago do filho e em sua cabeça, disparando, ainda, aos risos, diversos outros tiros em seu corpo, fazendo-o sangrar copiosamente, após descobrir-lhe homossexual.
Como assinalado pelo Procurador de Justiça atuante no caso, “O ‘humor’ do vídeo decorre da identificação: somente quem compartilha do desejo de realizar tais atos de violência, ou que os entendam no seu íntimo, como naturais, diante das situações narradas, irá achar graça no material. O vídeo reforça machismo e homofobia e ainda naturaliza atos de violência contra minorias, tratando-os como se integrassem o inconsciente coletivo, como se as violências retratadas constituíssem desejos reprimidos, mas existentes em todos nós, bastando um remedinho para liberá-los”.
O que chamou atenção na decisão da 8ª Câmara de Direito Privado, porém, além do valor baixo concedido a título de indenização diante da gravidade do conteúdo dos vídeos, foi o julgamento improcedente do pedido de retirada do ar do material e dos resultados de pesquisa do Google, ao argumento da inexistência de “ilícito penal a justificar a intervenção estatal”.
Causa bastante estranheza o fundamento levantado, especialmente pelo reconhecimento de se tratar de abuso do direito à livre manifestação, com material farto de agressões físicas e verbais direcionadas a minorias. Ao que parece, estabeleceu-se uma problemática mistura entre o campo criminal e civil-constitucional. Se foi constatado abuso de direito e discurso de ódio, com a subversão da figura do humor para reforçar a violência contra minorais, desnecessária a análise de ocorrência de crime para a retirada de material que não encontra o necessário suporte constitucional para permanecer no ar.
Havendo a insistência, que repelimos, de perigosamente misturar as duas distintíssimas e autônomas áreas jurídicas, importante notar que o Tribunal derrapou ao dizer que não há crime, pois não há ofensa a pessoas determinadas, a aplicar os crimes contra a honra, e que o crime de racismo não leva em consideração questões de gênero ou orientação sexual, já que, independentemente de nosso entendimento sobre o tema, o STF enquadrou homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa de nosso Congresso Nacional.
Afinal, se houve o reconhecimento de que se trata de discurso de ódio, discriminatório, ofensivo e abusivo a ponto de ensejar o pagamento de danos morais coletivos, como permitir que o conteúdo siga à disposição do público? A condenação pecuniária por si só interrompe o recado indigno e abusivo de tão fundamental direito de se expressar? O pagamento de um determinado valor estanca a dor da opressão e violência que sustentam o suposto “humor” do vídeo que segue no ar?
Maria Isabel Tancredo
Advogada Associada no Escritório de Advocacia João Tancredo, formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) e ex-pesquisadora no projeto Direitos em Movimento: Territórios e Comunidades do Departamento de Direito da PUC-Rio.