Por Juliana Dal Piva – O Globo – 22/10/2020
RIO — Depois de dois anos lutando na Justiça, a historiadora Anita Leocádia Prestes conseguiu nesta quinta-feira receber de volta um conjunto de 319 cartas de Luís Carlos Prestes e Olga Benário, seus pais. A existência dos arquivos foi revelada pelo GLOBO em novembro de 2018 quando os documentos estavam prestes a ir à leilão após terem sido encontrados nas ruas de Copacabana. Ao tomar conhecimento da existência das cartas, Anita entrou com uma ação no Tribunal de Justiça do Rio e obteve vitória em todas as instâncias.
O comerciante Carlos Otávio Gouvêa Faria, que disse ter comprado a documentação, chegou a recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra as decisões do TJ-RJ. No entanto, o ministro Celso de Mello não admitiu o recurso porque analisou que não tinham sido cumpridos todos os requisitos para a apresentação. Desse modo, o mérito nem foi avaliado e a decisão do TJ-RJ de devolver as cartas foi mantida.
Conhecido como Cacá, o comerciante disse que as cartas foram achadas no lixo de Copacabana e, posteriormente, o material foi revendido para ele, por um valor não divulgado.
Ainda em novembro de 2018, o TJ já tinha emitido uma decisão liminar, a pedido de Anita Leocádia Prestes, para impedir que documentação fosse vendida. Soraia Cals, responsável pelo pregão à época, afirmou que o lance mínimo era de R$ 320 mil no lote.
Em 2018, Anita contou ao GLOBO que identificou no lote duas cartas escritas por ela quando o pai já estava fora da prisão e diz que as correspondências foram levadas da sede do partido entre 1945 e 1947. No conjunto de documentos, está uma carta de Olga escrita para Prestes, no período em que esteve presa no Brasil, contando que estava grávida de Anita.
– Acho que é uma vitória importante. Justiça. Era um absurdo não receber essas cartas. A maioria são da minha avó Leocádia e da minha tia Ligia falando de mim. De política nem se podia falar, porque a censura era muito forte – conta Anita. – Lembro delas lamentando o roubo das cartas do partido. Lamentavam muito. Minha avó escreveu desde 1936 duas vezes por semana até 1943, religiosamente, para meu pai – diz a historiadora, ao citar que já publicou livros com 900 cartas da família, mas sentia falta das cartas da avó.
Para Anita, o ótimo estado de conservação dos documentos mostra que as cartas não foram encontradas no lixo como foi mencionado.
– Esse negócio de dizer que acharam no lixo é outro absurdo. As cartas estão em perfeito estado de conservação. A gente vê que elas não foram tocadas e elas foram feitas em um papel fininho de seda, aquilo tá intocado. Está tudo em seus respectivos envelopes. É visível que não estava lixo. Acredito que estava nas mãos de descendentes desse policial – conta ela, ao citar uma reportagem do GLOBO que investigou a possível participação de Israel Souto, ex-chefe de gabinete de Filinto Muller, no episódio.
– É lamentável que o caso precisou chegar até o STF para se tomar a atitude que desde o início deveria ter ocorrido. A Anita queria ter levado essas cartas ainda em novembro de 2018. O que eu mais lamento é que esse processo era desnecessário porque o direito dela como filha era muito claro. Para a Anita, depois de tanto tempo, tantas lutas, mais uma. Acho que deveriam ter honrado a história dela e a história brasileira e devolvido as cartas a quem era de direito, mas para mim foi uma honra e fico feliz que o resultado do processo vai permitir que outros pesquisadores jovens tenham acesso a essas cartas – afirmou a advogada da filha de Prestes, Maria Isabel Tancredo.
Decisões do TJ
O relator do caso na 3ª Turma Recursal, juiz Arthur Eduardo Magalhães Ferreira, escreveu que “não se nega que a Recorrida é filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Benário como tal, herdeira de ambos, sendo, em relação à segunda, notoriamente a única herdeira em virtude do falecimento de Olga Benário nas prisões do regime nazista”. Segundo ele, “o que está em debate nesta demanda é direito de personalidade dos pais da Recorrida, cujo conteúdo particular foi ressaltado pelos próprios recorrentes ao anunciar o leilão das cartas”.
“Assim, se do APERJ não foram extraviadas, para lá não devem ser enviadas. Mesmo porque, agora, dado ao lapso de tempo decorrido desde 1992 até a descoberta do leilão em 2018, entendo que deve o lote ser entregue à parte autora, historiadora da UFRJ, que, certamente, dará a destinação a que alude nestes autos e que melhor dignificará a história vivida por seus pais. Ademais, entendo que as cartas, muitas delas escritas por Olga Benário, como também asseverado pelo APERJ, possuem caráter estritamente pessoal, pois redigidas por uma mulher ao homem que amava, em momentos de insofismável tristeza e angústia por conta do encarceramento de ambos, e pela filha deles ao pai, dentre outras”, descreveu o juiz.
Para resolver o impasse, o magistrado também descartou o mistério que envolve o lugar onde essas cartas estavam guardadas até o ano passado. Para ele, o importante é que se desconhecia o paradeiro destes documentos anteriormente. “Importante ressaltar que é desinfluente para o deslinde desta controvérsia se o lote de cartas foi extraviado do Partido Comunista por agentes que adentraram o recinto quando do cancelamento de seu registro pelo TSE em 1947, como afirma a parte autora, ou se o próprio Luiz Carlos Prestes ou seus sucessores o abandonou no lixo, conforme tese da defesa, embora não seja crível para este Juízo essa segunda alegação”, decidiu o juiz.