Passava das 23h do dia 31 de dezembro de 1988, um sábado de chuva fina e mar agitado, quando o pescador Jorge Souza Viana, de 28 anos, saiu da praia de Jurujuba, em Niterói, rumo a de Copacabana, na Zona Sul do Rio. Pelo sexto ano consecutivo, ele levaria a família e alguns amigos, a bordo de sua traineira de pesca, a Evelyn & Maurício, para assistir a queima de fogos. Mas, ao passar pela ilha de Cotunduba, próxima ao Morro do Leme, desconfiou de que havia algo errado. A uns 300 metros de distância, um barco de passeio começara a adernar.
Faltando dez para a meia-noite, Jorge viu a proa do Bateau Mouche IV se erguer e a popa submergir nas águas frias da Baía de Guanabara. Os ocupantes da Evelyn & Maurício agiram rápido. Lançaram cordas, boias e coletes salva-vidas para resgatar os náufragos que estavam em alto-mar ou sobre o casco emborcado.
A operação durou 20 minutos e, segundo Jorge, salvou mais de 30 pessoas – entre elas, sete membros de uma mesma família, os Fiszman, e sete crianças, como Luciana Wajngarten, de apenas dois anos. No naufrágio, Luciana perdeu os pais, Ruth e Alberto, e a irmã, Camila.
“Naquela hora, não consegui pensar em mais nada. Não parei para pensar que meu barco também podia virar por excesso de peso. A única coisa que eu queria era salvar o maior número possível de pessoas”, recorda Jorge, hoje com 58 anos.
“Pra ser sincero, não salvei ninguém. Foi Deus quem salvou. Foi ele quem me colocou ali, naquele momento. Qualquer um, no meu lugar, faria o que eu fiz”, diz o pescador que, em 2012, viveu outra história de naufrágio – no dia 1º de maio, seu barco foi a pique em Piratininga, depois de colidir contra as pedras, com dez pessoas a bordo.
Sua traineira, de 36 pés (cerca de 10 metros), não foi a única a prestar socorro às vítimas do Bateau Mouche IV. Pouco depois, o iate Casablanca, do empresário Oscar Gabriel Júnior, também começou a recolher náufragos. Por ser maior – 130 pés (ou 40 metros) –, conseguiu salvar mais gente.
“Não fosse a traineira do Jorge e o iate do Oscar, a tragédia teria sido ainda maior”, garante o escritor Ivan Sant’Anna, autor de Bateau Mouche – Uma Tragédia Brasileira (2015). “Outro herói quase anônimo foi o garçom Heleno, do Bateau Mouche III. Quando a embarcação chegou ao local, ele pulou na água para resgatar outros três sobreviventes, que estavam prestes a ser engolidos pelas ondas.”
Número de passageiros
A jornalista Elane Maciel, então com 38 anos, e sua irmã, a professora de educação física e fisioterapeuta Heloísa Helena, com 44, foram duas das mais de 30 pessoas que Jorge resgatou na noite do naufrágio.
Repórter do Jornal do Brasil, Elane ganhou os convites de cortesia do jornalista José Carlos Tedesco, assessor de imprensa da Itatiaia Turismo, patrocinadora do evento.
Com saída prevista para as 21h, o passeio custava Cz$ 150 mil (algo em torno de R$ 780 pelos valores de hoje) e dava direito à ceia – peru, farofa, tender e fios de ovos – e música ao vivo. No convés principal, Elane e Heloísa não encontraram lugar para sentar. Todas as mesas já estavam ocupadas. Subiram para o deque superior, mas, lá em cima, tiveram que ficar em pé, espremidas ao lado dos músicos do conjunto Café com Leite. “Que programa de índio!”, reclamou a jornalista.
Por volta das 22h15, o Bateau Mouche IV foi interceptado por uma lancha da Marinha. O primeiro-sargento Antônio Braga de Vasconcelos subiu a bordo e, como de praxe, verificou a documentação do barco e a habilitação do mestre-arrais, Camilo Faro.
Tudo indica que o barco teria sido liberado ali mesmo se Camilo não tivesse dito ao oficial que desconfiava de superlotação. Na dúvida, o Bateau Mouche IV teve que regressar ao restaurante Sol & Mar, na Enseada de Botafogo, de onde partira. “Ali, tive um mau pressentimento. Por que voltamos? Ninguém explicava”, relata Elane.
Ao encostar, outro oficial da Marinha, o sargento José Reinaldo Franco, subiu a bordo e, na base do “olhômetro”, começou a contar os passageiros. Da primeira vez, contabilizou 145. Da segunda, 149. Até hoje, ninguém sabe ao certo quantas pessoas o Bateau Mouche IV transportava na noite da tragédia. Pudera. Não havia lista de passageiros ou checagem de nomes. Muitos sobreviventes – em sua maioria, turistas estrangeiros – não se apresentaram à Justiça.
Aflitas, Elane e Heloísa pediram para saltar. Mas, o mestre-arrais, Camilo Faro, não chegou a atracar o barco. “Não pode”, avisou um dos quatro tripulantes. “Procurem relaxar, o passeio é lindo!”, aconselhou. Passados 20 minutos, o barco foi liberado. “Segundo testemunhas, os militares teriam sido subornados pelo pessoal da Itatiaia Turismo. Mas, durante o inquérito, essa acusação jamais foi provada”, afirma Ivan Sant’Anna.
Pesadelos
Lá pelas tantas, Elane foi ao banheiro, que ficava no pavimento inferior, e não gostou do que viu: estava totalmente inundado. Quando a descarga era acionada, a água do mar, em vez de escoar, subia pelo interior do vaso. “Não pensei que o barco fosse afundar. Mas tive a certeza de que havia algo errado”, diz.
Ao voltar para o deque superior, tentou se segurar na amurada. Não conseguiu. Num dos muitos solavancos do barco, foi arremessada longe.
Em alto-mar, a jornalista teve a cabeça atingida por um destroço do barco. Por sorte, se agarrou a uma cadeira como tábua de salvação – nenhum dos móveis era afixado ao convés. A certa altura, entre uma braçada e outra, prestou socorro a Samanta Schanzer, de 12 anos, que estava se afogando. Por mais que gritasse, ninguém ouvia. A queima de fogos, para comemorar a chegada de 1989, já havia começado em Copacabana.
Pouco depois de adernar, o Bateau Mouche virou com o casco para cima. Quando finalmente emborcou, os passageiros que estavam no convés superior se jogaram ou foram lançados ao mar. Já os que estavam no salão principal ficaram aprisionados no interior do barco. Por volta da 0h10 do dia 1º de janeiro de 1989, o Bateau Mouche IV foi a pique.
“Ainda hoje tenho pesadelos horríveis. Durante muito tempo, tive verdadeiro horror a barco. Até a travessia Rio-Niterói me recusava a fazer. Sempre tive vontade de fazer cruzeiro, sabe? Hoje em dia, nem de graça!”, confessa Elane que, na noite do naufrágio, só veio a descobrir que sua irmã, Heloísa, também conseguira se salvar ao chegar ao cais do Sol & Mar.
Desistências
Ao todo, 55 pessoas morreram. A atriz Yara Amaral, de 52 anos, foi uma delas. Ela e sua mãe, Elisa, de 73, ganharam os convites de um casal de amigos, Silvio e Dirce Grotkowski. Yara chegou a convidar os filhos para acompanhá-la no passeio, mas, Bernardo e João Mário, de 16 e 14 anos, preferiram passar o Réveillon na casa de amigos.
Bernardo Amaral, hoje com 46, recorda que foi seu pai, o também ator Luiz Fernando Goulart, quem lhe deu a notícia.
“Entrei em choque. Custei a acreditar que havia perdido, de uma só vez, minha mãe e minha avó”, relata o empresário que, em 1992, criou a associação Bateau Mouche – Nunca Mais para defender as famílias das vítimas e acompanhar os processos na Justiça. “As feridas fecharam, mas as cicatrizes ficam. Desde então, evito viajar no Réveillon. Gosto de ficar em casa, recolhido. Não quero estragar a festa de ninguém”, explica.
O número de vítimas poderia ter sido maior. Muitos convidados desistiram do passeio em cima da hora. É o caso do artista plástico Georges Bom de Almeida, de 58 anos. Filho de pai carioca e mãe gaúcha, era dono de uma pré-escola em Porto Alegre e, desde garoto, gostava de passar Natal e Réveillon no Rio. Naquele ano, ganhou convite, de um amigo, para curtir a virada do ano em alto-mar.
Ao chegar ao Sol & Mar, se decepcionou: “Imaginava que o barco fosse maior e mais glamouroso. Um transatlântico ou algo do tipo”, recorda. “Quando vi o Bateau Mouche, achei pequenininho. Para piorar, havia muita gente a bordo, começara a chuviscar e o barco balançava muito”.
Por via das dúvidas, seguiu, a pé, para Copacabana. No dia seguinte, quando chegou em casa, em Icaraí, todos levaram um susto. “Acharam que eu tivesse morrido”, conta.
Fuga
Dois laudos – um da Marinha e outro da Polícia Civil – apontaram que o Bateau Mouche IV estava com excesso de passageiros e uma série de outras irregularidades, como furos no casco, escotilhas abertas e coletes salva-vidas fora do prazo de validade.
Não bastasse, uma reforma no convés superior, que incluía a instalação de um piso de cimento e a colocação de duas caixas-d’água, totalizando quatro toneladas, comprometeu a estabilidade do barco.
“Todos têm sua parcela de culpa: desde o mestre-arrais, Camilo Faro, que se aventurou em mar aberto apesar das péssimas condições do mar, até os vistoriadores da Capitania dos Portos, que aprovaram o barco para levar até 153 pessoas”, afirma Ivan Sant’Anna.
Quando foi construído, no início dos anos 1970, a lotação máxima do Kamaloka, o nome de batismo do Bateau Mouche IV, era de apenas 20 pessoas, entre passageiros e tripulantes.
Muitos sobreviventes – além das famílias de quem morreu na tragédia – entraram na Justiça. Na maioria dos casos, os réus são três: a empresa Bateau Mouche, proprietária da embarcação; a agência de viagens Itatiaia Turismo, patrocinadora do passeio; e a União, por falta de fiscalização e socorro.
Elane é das muitas que, até hoje, não viu a cor do dinheiro. “Será que estão esperando eu morrer para pagar a indenização?”, quer saber.
O advogado João Tancredo, de 61 anos, cuida do caso dela e de mais quatro vítimas do Bateau Mouche. Famoso por defender causas de grande repercussão, como os pedidos de indenização para familiares de vítimas das chacinas de Vigário Geral (1993) e Costa Barros (2015) e do pedreiro Amarildo (2013), afirma que, em termos de morosidade, o caso Bateau Mouche é “imbatível”.
“O problema do Judiciário brasileiro não está numa suposta quantidade excessiva de recursos, mas na demora no julgamento dos casos”, explica o advogado.
Por causa da “extrema lentidão” da Justiça, o patrimônio das empresas foi “esvaziado” ou “ocultado”. Pior: condenados a quatro anos de prisão em regime semiaberto por homicídio culposo, sonegação fiscal e formação de quadrilha, os três sócios majoritários da Bateau Mouche – os espanhóis Faustino Puertas Vidal e Avelino Rivera e o português Álvaro Pereira da Costa – fugiram para a Europa, em 1994. Desde então, nunca mais se ouviu falar deles.
“Ainda tivemos anulações de sentença, que fizeram tudo voltar à estaca zero. O processo movido por Carmelita Guimarães, que perdeu a filha na tragédia, já teve três sentenças. Infelizmente, Carmelita morreu sem receber qualquer reparação”, lamenta o advogado.