Por Carolina Guerra e João Bertholini – piauí – 22/07/2022
“Amor, não deixa impune. Vão ter muitos casos como o meu.” Marcelo do Couto Santos repetiu a frase diversas vezes para sua mulher antes de morrer, aos 49 anos. Por três décadas, ele trabalhou como técnico de operações num terminal da Transpetro, subsidiária da Petrobras, em Cubatão, no litoral de São Paulo. A exposição frequente ao benzeno, um produto altamente tóxico, usado sobretudo nas indústrias petroquímica e siderúrgica, ocasionou os problemas de saúde que levaram o operário à morte, em 18 de setembro de 2017.
Para atender o desejo do marido, Josilene Gois dos Santos iniciou uma batalha na Justiça contra a Petrobras logo que ficou viúva. Ela reivindica uma indenização da estatal pelos danos causados a Marcelo, mas sabe que a disputa vai se arrastar por muito tempo. As audiências judiciais têm sido verdadeiras torturas. Numa das mais tensas, a advogada da Petrobras chegou a questionar o atestado de óbito do funcionário, em que a contaminação por benzeno aparece como causa da morte. “O juiz perguntou se a advogada entendia mais do assunto que o próprio médico. Na hora, comecei a chorar. Ela não conheceu o meu marido para falar um absurdo desses”, relembra Josilene.
Um dos piores reveses sofridos pela viúva foi o desmonte das comissões tripartites que faziam parte do Ministério do Trabalho e Previdência. Formadas por membros do governo, trabalhadores e empresários, se incumbiam de planejar, coordenar e avaliar políticas públicas relativas à saúde e à segurança no ambiente laboral. O desmonte acabou atingindo a Comissão Nacional Permanente do Benzeno, implementada em 1996 para regulamentar e fiscalizar o uso do produto. Um decreto do presidente Jair Bolsonaro, assinado em 21 de agosto de 2019, não só encerrou a CNPBz como anulou as portarias geradas por ela.
Pouco antes do encerramento, em julho de 2019, o governo federal recriou a Comissão Tripartite Paritária Permanente, que em tese substituiria todas as demais. Entretanto, na portaria que define o funcionamento da CTPP, não há nenhuma menção específica ao benzeno. “Extinguir a CNPBz significou um retrocesso enorme. Foi mais uma ilha de democracia que Bolsonaro destruiu”, lamenta Deyvid Bacelar, coordenador geral da Federação Única dos Petroleiros e ex-membro da comissão.
O benzeno é um composto líquido e incolor, que normalmente fica armazenado em tanques nas indústrias. Como tem alta volatilidade, há o risco de ser inalado pelos trabalhadores. O contato da pele com a substância também é danoso. Entre 2000 e 2020, o Brasil registrou 127 mil mortes por câncer de bexiga e leucemia mieloide. As doenças podem estar relacionadas à exposição frequente ao produto. Em 2020, houve no país 2,95 casos desses tipos de câncer para cada 100 mil habitantes – a média mundial é de 2,66 por 100 mil habitantes. Um dos primeiros sinais de contaminação é a queda nos níveis de leucócitos (ou glóbulos brancos), células que atuam na defesa do organismo.
Quando alguém se expõe pouco ao benzeno, os malefícios tendem a ser barrados pelo sistema imunológico. O perigo aumenta para quem trabalha continuamente com o produto. Como a intoxicação se dá de maneira silenciosa, é comum que os operários demorem anos ou décadas para apresentar sintomas. Foi o que aconteceu com Marcelo.
De início, o técnico de operações notou manchas escuras na pele. Pareciam hematomas ou uma dermatite, mas demoravam a sumir. Segundo Josilene, as manchas surgiram em 2015. Os exames periódicos feitos na Petrobras atestaram que o funcionário estava apto a continuar trabalhando. O próprio Marcelo relativizou os sintomas. “Era um cara muito responsável e sempre pontual, que idolatrava a empresa”, conta a viúva. “Antes da doença, ele brincava que queria ser enterrado com uma bandeira do São Paulo e outra da Petrobras. Mas, no fim da vida, perdeu a admiração pela estatal e me falou para esquecer a segunda bandeira.”
De 2015 em diante, a saúde do operário só piorou. “Marcelo passou a ter icterícia, diarreia e sangramentos em várias partes do corpo, como a boca e o nariz”, descreve Josilene. “Uma vez, ele fez um pequeno corte no dedo da mão enquanto trabalhava, e aquilo provocou uma hemorragia imensa, que não parava. Precisamos ir a um pronto-socorro.” Nessa época, o casal resolveu consultar um infectologista que não estava ligado à Petrobras. “Foi só então que entendi a gravidade da coisa”, afirma a viúva. O operário lhe contava sobre os vazamentos de produtos químicos na estatal, mas sem demonstrar muita preocupação. “Ele dizia que o benzeno tem cheiro de talco”, lembra Josilene. Relativizar o problema é uma atitude comum entre os contaminados, que temem retaliações das empresas ou uma redução salarial, caso sejam afastados do serviço.
Marcelo ingressou no terminal da Transpetro aos 18 anos. Três décadas depois, em maio de 2017, se aposentou por invalidez. “Ele ficou poucos meses sem trabalhar, já que morreu em setembro. Foi tudo muito rápido”, diz a viúva, que atualmente recebe uma pensão e um seguro saúde da Petrobras. Aos 52 anos, ela continua morando no mesmo apartamento que dividia com o marido em Praia Grande, no litoral paulista, de onde o operário saía para pegar no batente em Cubatão, a cerca de 20 km. O casal permaneceu junto por quase duas décadas. Ambos tinham um filho de relacionamentos anteriores e faziam planos para quando se aposentassem. “A gente sempre passava férias em Monte Verde, no Sul de Minas. Planejávamos comprar uma pousadinha por lá”, conta Josilene. “Éramos almas gêmeas. Nunca brigamos. Depois que o Marcelo morreu, fiquei muito tempo com a impressão de que ele iria chegar a qualquer instante. Demorei para me acostumar com a ideia de que meu marido não voltaria mais.”
O caso de Adriano Silvestre Gonçalves é parecido. Em 2006, ele passou num concurso da Petrobras para o cargo de técnico de manutenção. Trabalhou numa balsa da empresa, a BGL-1, na escala 14 x 21. Ficava embarcado durante catorze dias, em plantões noturnos ou diurnos de doze horas. Depois, tirava 21 dias de folga. Entre suas funções, estava a de lidar com sistemas de purificação e transferência de óleo diesel e óleo lubrificante.
Em 2011, Gonçalves manifestou dores de cabeça, gripes constantes e sinusite. No ano seguinte, começou a se sentir bastante cansado. Também percebeu que tinha vários pelos encravados e nódulos por todo o corpo, que desapareciam e retornavam. O diagnóstico de leucemia mieloide aguda veio em agosto de 2012. Ele foi internado imediatamente para o tratamento quimioterápico. Em fevereiro de 2014, se submeteu a um transplante de medula, mas amargou uma série de efeitos colaterais, que lhe deixaram sequelas nos olhos, na pele e nas vias respiratórias. Mesmo assim, sobreviveu. Hoje tem 56 anos e já se aposentou.
No processo que move contra a estatal desde 2017, Gonçalves alega que esteve exposto regularmente ao benzeno. A empresa perdeu a causa na segunda instância, em junho de 2021, e foi condenada a pagar uma indenização de 1,1 milhão de reais ao ex-funcionário, além de uma pensão mensal vitalícia. Ela ainda pode recorrer. “Tivemos muita dificuldade para associar o benzeno à doença. A Petrobras insistiu durante todo o processo que a relação não existia”, diz João Tancredo, advogado de Gonçalves.
Acontaminação de trabalhadores por benzeno começou a ganhar visibilidade no Brasil apenas durante os anos 1980, com o arrefecimento da ditadura, o fim da censura e o fortalecimento dos sindicatos. Em 1983, operários da Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA), em Cubatão, fizeram a primeira denúncia pública de intoxicação pelo produto. Entre eles, haviam aumentado significativamente os casos de leucopenia – doença provocada pela redução do número de leucócitos – e outros distúrbios, inclusive mentais.
Posteriormente, novas denúncias foram feitas por trabalhadores da construção civil de Santos (SP), que prestavam serviços de manutenção na indústria pesada. Em 1985, pelo menos cinquenta casos de leucopenia eclodiram em Volta Redonda (RJ), onde fica a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Um ano depois, registraram-se sessenta ocorrências na Indústria Química Matarazzo, em São Caetano do Sul, município do ABC paulista. A fábrica acabou interditada.
Em 1993, o então Ministério do Trabalho e Emprego convocou um grupo de técnicos para analisar os riscos do benzeno. No ano seguinte, publicou uma portaria reconhecendo o potencial cancerígeno da substância e proibindo a exposição direta a ela, que só poderia ser manipulada por meio de sistemas herméticos – ou melhor, de instrumentos que evitam o contato respiratório ou cutâneo. As indústrias siderúrgica e petroquímica se mobilizaram para conseguir um bom prazo de adaptação às novas regras. A mobilização resultou, em 1995, no Acordo Nacional do Benzeno, que implantou a CNPBz.
Apesar dos avanços, o petroleiro Roberto Viegas Krappa morreu em 2004 de leucemia mieloide aguda. Tinha 36 anos e trabalhara como técnico de operações na Refinaria Presidente Bernardes (RPBC), que pertence à Petrobras, em Cubatão. Sua morte ocorreu 22 dias depois de ele acusar os primeiros sintomas da doença. A CNPBz transformou a data (5 de outubro) no Dia Nacional de Luta Contra a Exposição ao Benzeno. A viúva do operário também travou uma longa batalha nos tribunais até a Justiça reconhecer o nexo entre a enfermidade do marido e o contato que ele tivera com o produto.
No mesmo ano, o Ministério do Trabalho recebeu uma denúncia sobre a morte de Krappa e a situação de outros treze trabalhadores da RPBC que apresentaram alterações hematológicas. Uma inspeção constatou que a empresa não respeitava as normas técnicas relativas ao benzeno. Por isso, duas áreas da refinaria acabaram interditadas. Em 2005 a RPBC assinou, então, um termo de compromisso com o Sindicato dos Petroleiros do Litoral Paulista (Sindipetro-LP) em que se propunha a adequar os equipamentos irregulares e fazer uma avaliação médica de todos os seus funcionários. Como resultado do acordo, os treze operários contaminados foram transferidos de setor.
Em 2009, o Ministério Público do Trabalho (MPT) constatou após uma diligência que a RPBC não estava mais cumprindo o termo de compromisso. Depois de negociações infrutíferas com a refinaria, abriu uma ação civil pública contra a Petrobras em 2011. A disputa judicial se arrasta até agora. “Enquanto isso, os trabalhadores continuam adoecendo”, diz Marcelo Juvenal Vasco, diretor do Sindipetro-LP e funcionário da RPBC desde 2002. Ele afirma que dezessete associados do sindicato morreram recentemente em decorrência de câncer. “Eram todos petroleiros aposentados, cujas mortes não foram devidamente estudadas e, por isso, não são atribuídas a agentes químicos presentes na refinaria.”
Procurada pela piauí, a Petrobras afirmou que a primeira instância da Justiça do Trabalho julgou improcedente a ação civil pública, já que um perito constatou que a RPBC “cumpriu todas as providências acordadas no termo de compromisso”. A estatal disse ainda que o Tribunal Regional do Trabalho (segunda instância) negou recurso do MPT e manteve a improcedência.
Vasco lidou com o benzeno quando trabalhava em outra empresa na região de Cubatão. À época, ele chegava a descarregar de seis a doze carretas do produto por dia. “A gente conectava um mangote no caminhão para tirar o benzeno. Só que, às vezes, o mangote se desconectava, e a substância que vazava era despejada num balde de alumínio. O pessoal mais antigo conta que, no passado, os operários até lavavam as mãos e as luvas com o benzeno do balde”, afirma o sindicalista, que se formou em engenharia química e fez pós-graduação em engenharia de segurança do trabalho.
Cubatão já foi o epicentro dos casos de contaminação no país. Entre as décadas de 1980 e 1990, houve tamanha explosão de ocorrências na COSIPA que isso contribuiu para o surgimento do Acordo Nacional do Benzeno e da CNPBz. Advogados que brigavam pela indenização dos trabalhadores intoxicados na companhia se recordam bem das dificuldades que enfrentaram naquele período. “Os funcionários eram massacrados por todos os lados. Muitos acabaram recebendo uma aposentadoria irrisória porque o salário deles nunca aumentou, já que estavam impossibilitados de trabalhar”, diz a advogada Andrea Amaral.
Em 1993, ela se espantou ao encontrar no Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos da Baixada Santista um auditório lotado de operários da COSIPA que precisavam de apoio por causa dos problemas trazidos pelo benzeno. “Quem compareceu àquela assembleia logo se tornou meu cliente. Pouco depois, quem não compareceu também acabou se tornando. Meu escritório virou uma loucura.” Com quase quinhentos casos sob sua responsabilidade, a advogada resolveu montar uma ação inicial que funcionasse como modelo para as demais. Ela tinha a expectativa de que o tempo ajudasse a resolver as pendências, seja pelo aparecimento de novas informações científicas sobre o assunto, seja pela renovação no quadro de juízes de Cubatão e arredores.
O tempo não fez milagre, mas de fato ajudou. Hoje, dos cerca de quinhentos casos, menos de dez estão à espera de indenizações já autorizadas pela Justiça. Os outros foram resolvidos, sempre em favor dos trabalhadores. Um dos casos mais bem-sucedidos é o de R. (a advogada prefere não revelar o nome do cliente). Depois de uma disputa judicial que durou mais de dez anos, o operário recebeu uma indenização de aproximadamente 3 milhões de reais. A COSIPA o afastou de suas funções em 1984, quando ele apresentou os primeiros sinais de contaminação por benzeno. Somente em 1994 é que R. conseguiu se aposentar por invalidez, à semelhança de oitocentos funcionários que haviam sido afastados pelo mesmo motivo. Cinco anos depois, a advogada entrou com o processo de indenização. Perdeu a causa na primeira instância em 2002. A decisão favorável na segunda instância veio apenas em 2008, e a indenização chegou dois anos mais tarde. O êxito alcançado por R., porém, é raríssimo. “Geralmente, quando os processos terminam, os trabalhadores contaminados não recebem mais do que 3,6 mil reais de aposentadoria mensal”, diz a advogada.
Comprada pela Usiminas em 2009, a COSIPA paralisou a produção de aço em 2016, mas preservou outras atividades. Nos tempos áureos, tinha quase 19 mil trabalhadores. Agora, restam 1,3 mil.
A Comissão Tripartite Paritária Permanente (CTPP) – que abriga sindicalistas e representantes de confederações patronais, como as do agronegócio, da saúde, dos transportes e da indústria – dispõe de quatro grupos temáticos. Um deles é o de Agentes Ocupacionais Químicos e Cancerígenos. No ano passado, a atuação da CTPP na seara do benzeno se limitou a estabelecer regras de controle em postos de gasolina, onde os frentistas correm o risco de ficar expostos ao produto.
Membro titular da comissão, o procurador federal Felipe Mêmolo Portela pensa diferente de outros pesquisadores e critica a maneira como o país enxerga o benzeno. Ele é o atual presidente da Fundacentro, instituição pública especializada em saúde no trabalho. “O Brasil não admite nenhum limite como aceitável para o benzeno. O aceitável é zero”, escreveu Portela em sua dissertação de mestrado, apresentada na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em dezembro de 2020. “Se não se aceita qualquer nível de benzeno no ar para fins ocupacionais, o país deveria proibir atividades como de frentista e mecanizar todo o processo de siderúrgicas ou da indústria do petróleo. É a única forma de garantir que nenhum trabalhador será afetado. Mas isso não é feito, até porque seria socialmente muito mais danoso do que manter os trabalhadores expostos a alguma concentração de benzeno. Porém, para fins normativos, as empresas têm que buscar a exposição zero, tecnicamente impossível em muitas situações, para não sofrerem qualquer sanção.”
Com o fim da CNPBz, a possibilidade de revisões e avanços na legislação sobre o assunto se tornou mais incerta. “Quando extingue a comissão, o atual governo tira dos trabalhadores um espaço de estudos e debates. É como se arrancassem o pé de uma mesa que já estava bamba”, diz a advogada Danielle Motta, ex-assessora jurídica do Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Desde 2011, ela move uma ação coletiva reivindicando que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) reconheça o trabalho com o benzeno como atividade especial para os operários da Refinaria Duque de Caxias (Reduc), da Petrobras. Se o reconhecimento vier, os empregados terão direito a uma aposentadoria igualmente especial, com benefícios superiores ao da aposentadoria comum.
Outro processo, movido pela promotora Viviann Brito Mattos, trouxe resultados positivos em 23 de novembro de 2021. Na ocasião, a Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro determinou por liminar que a Petrobras faça exames periódicos de exposição ao benzeno em aproximadamente 4 mil trabalhadores da Reduc e do centro de pesquisas da estatal. Em nome da isenção, quem realiza os exames é o Instituto Nacional de Câncer e não os médicos da empresa. A Petrobras ainda está recorrendo da decisão.
“Depois que a CNPBz terminou, o Ministério Público do Trabalho passou a ser o único fiscal da lei. Acontece que o MPT só pode agir quando recebe uma denúncia”, afirma Brito Mattos. “Antes, se a CNPBz demonstrasse a necessidade de exames específicos nos operários expostos ao benzeno, qualquer pessoa poderia mover uma ação popular para requerê-los. Quando você abole a fiscalização que a comissão exercia, acaba diminuindo a possibilidade de os trabalhadores agirem.”
Carolina Guerra
É jornalista há 15 anos, com passagens por agências de notícias internacionais. Escreve sobre temas relacionados a economia, finanças e mercado de combustíveis.
João Bertholini
É fotógrafo, artista e jornalista. Realizou, em 2021, a exposição “Afetividades Ordinárias”, com retratos de pessoas trans e travestis. Colabora com revistas como Vogue e Marie Claire.