Por Carmélio Dias e Luiz Ernesto Magalhães — O Globo – 22/10/2022
Humilhações, xingamentos, isolamento e exclusão fariam parte da rotina vivida por duas meninas dos 10 aos 13 anos, quando eram alunas do tradicional Colégio Sion, no Cosme Velho, na Zona Sul do Rio. Os termos são citados na ação de reparação de danos que elas, juntamente com seus pais, movem contra a escola. As agressões que as meninas alegam ter sofrido seriam impostas por colegas de turma “num cenário grave e permanente de bullying”, conforme consta no processo.
De acordo com a acusação, havia a tendência de a escola incorporar o ponto de vista de alguns pais que negavam a existência do problema, classificado por eles como “mimimi”. Em nota, o Sion informou que “a instituição não recebeu qualquer notificação, quer judicial ou extrajudicial”. Acrescentou que, por isso, “não emitirá qualquer comentário neste momento”. “Se na eventualidade receber alguma notificação, a mesma analisará o conteúdo e poderá emitir o comentário necessário”, diz o texto do colégio, que é dirigido por freiras.
Casos de bullying em escolas também têm sido denunciados à Comissão da Criança e do Adolescente da Câmara Municipal. A presidente do grupo, vereadora Thaís Ferreira (PSOL), calcula uma média de 12 relatos por semana. Na Justiça, nem sempre os responsáveis conseguem provar que houve bullying. Um levantamento feito por amostragem pelo GLOBO mostra que 23 de 34 processos no Tribunal de Justiça que chegaram à segunda instância nos últimos dez anos tiveram sentenças desfavoráveis.
Fora dos tribunais, o problema tem solução ainda mais difícil. No ano passado, os pais das alunas do Sion tiraram as filhas — hoje com 14 anos — do colégio onde uma estudava desde os 2 anos e a outra, desde os 6.
— A escola demorou muito tempo para reconhecer que o caso era grave e depois houve uma absoluta incapacidade de lidar com o problema. Demonstraram pouca habilidade em agir com os agressores. A preocupação deles era de direcionar as ações para as vítimas, o que só aumentava a insegurança e o sofrimento delas — disse Maria Isabel Tancredo, advogada das famílias.
Autopunição e autolesão
Ainda segundo a advogada, os pais tiveram que procurar tratamento psicológico para as crianças. Ficou constatado que as meninas apresentavam quadro de depressão, ansiedade, culpa, irritabilidade e baixa autoestima, que culminou em “comportamento de autopunição, incluindo autolesão e escarificações (arranhões ou pequenas incisões)”, conforme laudos psicológicos anexados à ação. As famílias pedem indenização por danos morais e materiais de R$ 305.646,08.
— Foi um choque quando descobrimos que ela fazia pequenos cortes nos pulsos e escondia com pulseiras. Imagine o nível de sofrimento que ela estava vivendo para chegar a esse ponto — diz a mãe de uma das meninas, que também procurou terapia, juntamente com o marido, para lidar com o problema que afeta “não só a menina, mas também toda a família”, como consta de laudo da psicóloga que atendeu o casal.
Para os responsáveis, a decisão de processar o colégio faz parte de um movimento que visa até mesmo à educação das próprias filhas e ao incentivo para que outros pais resolvam encarar o problema de frente.
— Sabemos que muita gente passa por isso, mas prefere não se expor. Tirar as meninas da escola só resolve parte do problema, não dá para simplesmente virar a página, como se diz. Isso tem um sentido educativo: elas precisam saber que têm voz, que têm direitos e que ninguém pode simplesmente passar por cima disso — analisou o pai de uma delas.
Em outro caso, que tramita em sigilo de justiça, a 3ª Câmara Cível manteve, em setembro, a indenização por bullying para uma estudante que foi humilhada após ter imagens de sua relação sexual expostas na escola. Em 2018, uma escola particular no Méier e uma professora foram condenadas a indenizar em R$ 6 mil um adolescente. O rapaz então com 16 anos passou a sofrer bullying dos colegas após ter sua sexualidade questionada em sala de aula pela professora.
Esse tipo de intimidação pode resultar em agressões físicas. Foi o que aconteceu numa escola privada de Ipanema entre dois alunos. A família de um deles foi à Justiça, mas uma decisão da 23ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio isentou em agosto o colégio de responsabilidade. Os desembargadores entenderam que a instituição atuou para remediar a situação.
Foco apenas acadêmico
Fernando Gabas, especialista em educação socioemocional, destaca a importância de as escolas investirem para impedir casos de violência e bullying. Ele acrescentou que os jovens devem aprender a lidar com emoções e a desenvolver empatia.
— A grande maioria das escolas tem um foco puramente acadêmico. Os alunos não aprendem sobre eles mesmos. Isso é uma deficiência gravíssima da educação — avaliou
O assunto ainda é um desafio para as escolas. O Colégio pH, que tem mais de dez unidades no Rio, informou ter projetos para promover “um clima escolar positivo” e combater o preconceito. Segundo a instituição, há um programa de convivência para trabalhar a “formação da personalidade ética de um sujeito que tem preocupação com o entorno e com o coletivo, além do desenvolvimento de valores universalmente desejáveis”.
Em nota, o Colégio Ao Cubo, com quatro escolas na cidade, informou que “as práticas de bullying e cyberbullying são tratadas como assuntos prioritários” e que os estudantes participam de encontros regulares para tratar da formação socioemocional com abordagem feita a partir da vivência dos alunos dentro e fora da escola.
No colégio QI, com seis unidades no Rio, há aulas semanais de Comunicação Não Violenta (CNV) desde os primeiros anos, “para que os alunos se desenvolvam de maneira empática ao longo da trajetória escolar”. Os temas são abordados por meio de “histórias e dinâmicas que estimulam a reflexão e o respeito às diferenças”. No Colégio Sá Pereira, em Botafogo, “alunos a partir do 2º ano do ensino fundamental participam semanalmente do projeto A Tribo. Segundo a direção, o objetivo da ação é trabalhar a empatia dos alunos, assim como promover o debate sem julgamentos.