Por João Tancredo para Revista Fórum – 29/08/2020
Às vésperas de mais um aniversário da chacina de Vigário Geral, me preparava para escrever mais um artigo que não deixasse a data passar em branco e me perguntava mais uma vez: por que, 27 anos depois, a sociedade brasileira ainda reproduz barbáries como esta?
Para mim, como ex-morador e ex-presidente da associação de moradores de Vigário Geral, a chacina de 29 de agosto de 1993 é aterrorizante. Perdi amigos. Mas, tenho certeza, a comoção foi generalizada. O assassinato daquelas 21 pessoas teve imensa repercussão à época e aconteceu apenas 39 dias após a chacina da Candelária, também amplamente noticiada e na qual oito jovens foram mortos.
Como advogado de dezenas de familiares das vítimas da chacina de Vigário Geral, conseguimos com que todas fossem indenizadas. Na área criminal, sete policiais foram condenados. Na esfera internacional, o caso levou o Brasil a responder nos tribunais da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Entretanto, nem comoção social, nem atuação do judiciário foram suficientes para parar a carnificina. E de nada adianta buscar refúgio em rasas relativizações do tipo “não houve indignação à altura”, a “memória do brasileiro é curta” ou a “ação da Justiça é tardia e não é tão rigorosa”. Nenhuma delas chega perto do fosso no qual estamos metidos. Senão, vejamos:
Um levantamento publicado pelo G1 em dezembro do ano passado apontou que, entre 2009 e 2018, ocorreram 411 chacinas somente no estado do Rio de Janeiro, nas quais 1.391 pessoas foram assassinadas.
Na última quinta-feira (27), o Atlas da Violência 2020, divulgado pelo Ipea, aponta que a taxa de homicídios de negros no Brasil aumentou 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto a de não negros diminuiu 12,9%.
Estamos em 2020 e os fatos seguem refletindo a brutalidade como marca fundamental daquilo que, lá atrás, já chamaram de processo civilizatório. Como bem resume Ailton Krenak, em entrevista ao Le Monde Diplomatique, “a história de colonização do Brasil é uma marcha sobre os territórios indígenas e a edificação sobre os cemitérios indígenas”. Nos três séculos subsequentes à chegada dos portugueses, a escravização trouxe o povo negro e o colocou a serviço desta marcha que, apesar de andar de ré, prossegue até hoje e chamam de desenvolvimento, com ordem e progresso.
A violência está enraizada na formação social brasileira, mas sempre atingiu de formas múltiplas e de maneira constante a parcela da população não-europeia e os territórios majoritariamente ocupados por ela. Historicamente, reproduziu-se aqui a desumanização de grupos sociais e de seus espaços, o desprezo destas vidas em conjunto.
A chacina de Vigário Geral é um retrato nítido desta tragédia. O massacre foi uma represália de policiais pela morte de PMs. Naquela noite, pouco depois da seleção brasileira ter vencido a Bolívia por 6 a 0 nas eliminatórias, mais de 30 homens encapuzados invadiram a favela, explodiram uma bomba dentro de um bar, atiraram a esmo pelas ruas, mataram idosos e crianças, invadiram uma casa e só nela assassinaram oito pessoas.
Hoje, 27 anos depois, o movimento negro está em evidência e ganha eco no mundo com o Black Lives Matter. No Brasil, a luta também está acesa e se processa diariamente contra o racismo estrutural. Na última quarta-feira (26), diversos veículos de mídia repercutiram uma investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro que apontava a presença de 244 criminosos foragidos da justiça dentro do Complexo da Maré. A favela foi taxada como um “bunker de bandidos”, o que rapidamente gerou indignação nas redes sociais, capitaneadas por comunicadores favelados, como Gizele Martins e Raull Santiago.
Apesar do debate crescente, a reprodução das bases que legitimam a violência contra negros parece automática. São olhares como o de Gizele, Raull e tantos outros que precisam de espaço, escala e apoio para enxergarmos o fundo do poço. Para reprogramar nossos rumos históricos. Para que barbáries como a chacina de Vigário Geral não se repitam.
*João Tancredo é advogado, secretário-Geral do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) e professor de Direito da Responsabilidade Civil na Universidade Candido Mendes
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum