João Tancredo – Escritório de Advocacia

A esperança de justiça com a retomada das investigações sobre as chacinas da Nova Brasília

Notícia Externa
Mais de 20 anos depois, as duas matanças da favela, no Rio, ocorridas nos anos 1990, terão reabertura de inquérito — e os culpados poderão finalmente ser punidos

Jaqueline Oliveira não tem nenhuma lembrança do pai. Quando a dona de casa, hoje com 26 anos, tinha apenas 10 meses de vida, ele saiu para ir a um baile funk e nunca mais voltou. Desde pequena, quando perguntava sobre o pai, a mãe desconversava: “Morreu”, respondia. Mas por quê? “Morreu porque morreu”, e era o fim da conversa. O protético Evandro de Oliveira, pai de Jaqueline, foi morto com um tiro em cada olho aos 22 anos no dia 18 de outubro de 1994. Os disparos foram dados por um policial, durante uma operação na Nova Brasília — uma das 15 favelas que formam o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Nesse mesmo dia, outras 12 pessoas foram assassinadas e retiradas da comunidade arrastadas pelos agentes. A polícia alegou que 13 traficantes haviam sido mortos durante um confronto.

O exame cadavérico de Evandro, que mostra as lesões nos dois olhos — indícios claros de execução —, é uma das provas mais importantes do processo que levou à condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em fevereiro de 2017. Na ação, foi julgada a resposta do Estado brasileiro à chacina que vitimou o protético e à outra carnificina que aconteceu apenas sete meses depois, na mesma favela, em que policiais mataram outras 13 pessoas. Foi a primeira vez que o país foi julgado e considerado culpado pelo tribunal internacional por não punir a violência policial. “Eu só fui saber o que aconteceu aos 20 anos. Minha mãe tomou coragem e veio me contar, mas ela não gosta de falar sobre isso. Ninguém da família gosta de lembrar aquele dia. Hoje, eu não tenho nem uma foto minha com meu pai. Não deu tempo”, contou Jaqueline Oliveira.

Até hoje, nenhum dos policiais foi condenado ou sequer preso pelos crimes cometidos em 1994 e 1995. No final do ano passado, na esteira da condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu nova denúncia sobre o caso envolvendo crimes não investigados. ÉPOCA teve acesso aos inquéritos policiais sobre as chacinas e mostra a série de erros e omissões da polícia, além das novas provas que surgiram e embasaram a nova denúncia, 25 anos depois.

Por volta das 5 horas do dia 18 de outubro de 1994, policiais civis e militares entraram na Nova Brasília para cumprirem mandados de prisão contra traficantes que agiam na região. A operação tinha sido planejada pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) — que era considerada a elite da Polícia Civil à época — e era uma represália ao ataque que criminosos fizeram à delegacia da área, a 21ª DP (Penha), uma semana antes, quando três policiais foram baleados. Ao todo, 13 jovens, todos homens com idades entre 14 e 30 anos, foram assassinados na favela naquela manhã. A versão apresentada pela polícia foi de que todos eram traficantes e haviam sido mortos em confronto — um policial foi ferido por um tiro de fuzil na perna. Os laudos de necrópsia, produzidos na semana posterior à operação, já desmentiam a versão oficial e davam indícios de que as vítimas haviam sido executadas.

Um deles era o de Evandro, pai de Jaqueline, atingido nos olhos. Outro mostrava que a ferida no peito provocada pelo projétil que matou Robson Genuíno dos Santos, de 30 anos, apresentava “zona de tatuagem” — marcas de pólvora expelidas pelo cano da arma, sinal de tiro a curta distância. Já o cadáver de Alan Kardec Silva de Oliveira, de apenas 14 anos, tinha, além de uma marca de tiro de fuzil na cabeça, escoriações nos dois cotovelos e antebraços — sinal de que o adolescente foi arrastado antes de ser morto, segundo um perito que analisou os laudos na Corte Interamericana. Todos os corpos foram retirados das cenas do crime: dois cadáveres estavam no porta-malas de um carro e os demais foram encontrados pelo Corpo de Bombeiros agrupados e envoltos em cobertores em três pontos da Praça do Terço, principal ponto de lazer da Nova Brasília. Na época, só duas fichas de antecedentes foram anexadas à investigação, ambas negativas. As demais só foram juntadas aos autos quase dez anos depois.

A Polícia Civil não realizou nenhuma perícia no local naquele dia. O registro de ocorrência foi feito na própria DRE, unidade que planejou e executou a operação, como “auto de resistência com morte dos opositores”. Como a versão oficial e as provas técnicas não batiam, o então governador, Nilo Batista, determinou a criação de uma Comissão Especial de Sindicância — chefiada pela delegada Martha Rocha, hoje candidata à prefeitura do Rio pelo PDT —, para colher provas adicionais. Só três dos 13 mortos tinham passagens pela polícia.

“DUAS ADOLESCENTES DE 15 E 19 ANOS FORAM ESTUPRADAS POR POLICIAIS DURANTE A OPERAÇÃO QUE CULMINOU NA MORTE DE 13 JOVENS NO COMPLEXO DO ALEMÃO. SETE AGENTES FORAM RECONHECIDOS, MAS NENHUM DELES FOI CONDENADO PELO CRIME”

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Em 12 de novembro, três adolescentes, que tinham 15, 16 e 19 anos à época, procuraram a comissão e enumeraram crimes cometidos pelos policiais em depoimentos ricos em detalhes. Duas delas, a mais velha e a mais jovem, contaram que foram estupradas durante a abordagem. Elas dormiam numa mesma casa na Rua Itararé, principal via da favela, quando o local foi invadido por cerca de dez policiais que perseguiam um homem. As adolescentes afirmaram que os agentes, enquanto perguntavam sobre o paradeiro de um traficante chamado “Macarrão”, obrigaram-nas a deitar de bruços no chão e começaram a espancá-las com um taco de madeira. Diante das respostas negativas, a mais jovem foi levada para o banheiro por um policial e foi obrigada, com uma pistola na cabeça, a fazer sexo anal com ele. A outra foi forçada a fazer sexo oral em outro agente em outra parte da casa. Ao deixarem o local, segundo as duas vítimas, os policiais ainda levaram uma televisão, um videogame, secadores de cabelo e seis pares de tênis — escondidos numa trouxa feita com um lençol.

Já a terceira adolescente relatou que dormia numa casa da favela com seu namorado André Luiz Neri da Silva, o Paizinho, de 17 anos. Segundo a jovem, Paizinho integrava o tráfico e possuía um fuzil, que estava no imóvel. Pela manhã, o casal foi surpreendido pelos policiais, que invadiram o local, encontraram a arma e passaram a espancar os dois, com socos e chutes. A mulher afirmou também ter sido apalpada nos seios. No fim das agressões, os agentes levaram Paizinho algemado, afirmando à namorada que iriam “quebrar” o traficante. Mais tarde, o cadáver foi encontrado com tiros nas duas mãos e nas costas. As três jovens foram submetidas, somente um mês depois dos crimes, a exames de corpo de delito — que nada constataram. Elas conseguiram reconhecer pessoalmente sete dos policiais, sendo que três foram apontados como os autores dos crimes sexuais. Após os depoimentos, Nilo Batista veio a público declarar que havia “indícios graves de que houve abuso de poder”.

Tereza Genoveva tinha 15 anos quando viu a imagem do irmão morto na televisão. Cosme, sete anos mais velho, foi uma das vítimas da chacina de maio de 1995, ocorrida menos de um ano depois da que vitimou o pai de Jaqueline Oliveira. Como Evandro, ele também não morava no Alemão: vivia em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, com a família e tinha ido à festa de aniversário de um amigo na noite anterior à operação. O cadáver de Cosme, que à época trabalhava como pizzaiolo num restaurante na rua de casa, foi retirado da favela amontoado em cima de outros numa Kombi da empresa municipal de limpeza urbana, a Comlurb. A foto estampou os jornais do dia seguinte. Hoje, Tereza Genoveva, de 39 anos, trabalha como gari na mesma companhia de limpeza. “Na época, tacharam meu irmão de traficante. A gente não tinha nem dinheiro para enterrar. O enterro só aconteceu três dias depois, porque fizemos uma vaquinha. A polícia invadiu o enterro, teve correria. Depois, na escola, as pessoas não queriam chegar perto de mim, diziam que eu era irmã de bandido”, lembrou.

A operação que culminou na morte de Cosme e outros 12 jovens foi planejada pela Delegacia de Repressão a Roubos e Furtos contra Estabelecimentos Financeiros. Na ocasião, segundo o registro de ocorrência, a unidade havia recebido uma denúncia anônima de que um “traficante e ladrão de bancos de prenome Wanderley receberia armamentos diversos de traficantes locais por volta das 6 horas” na favela. Quinze agentes em cinco viaturas e outros seis a bordo de dois helicópteros participaram da ação. As vítimas tinham idades entre 17 e 25 anos — dez delas foram mortas na mesma casa, cujo chão ficou todo coberto de sangue e partes de massa encefálica. Como os corpos foram retiradas da cena do crime, não houve perícia. Na delegacia, o detetive Moyses Pereira de Castro, que apresentou a ocorrência, explicou que a Kombi da Comlurb foi usada para retirar os corpos do local porque era “o único veículo que tinha condição de ser utilizado” na ocasião. Todas as vítimas deram entrada já mortas no Hospital Estadual Getúlio Vargas.

Apesar dos protestos dos moradores da favela, que chegaram a colocar fogo num ônibus e denunciaram, em entrevistas a jornais, que os mortos estavam rendidos, a operação foi considerada “bem-sucedida” pela Polícia Civil. No dia dos homicídios, policiais deram entrevistas creditando o “sucesso” da operação à permissão, pela Justiça, do uso de fuzis apreendidos anteriormente pelos agentes. Ao todo, os policiais apresentaram quatro fuzis, uma metralhadora, um rifle, três pistolas, cinco revólveres calibre 38 e duas granadas na delegacia, ao registrarem a ocorrência. Três agentes se feriram sem gravidade durante a ação. O inquérito, da mesma maneira que o caso de 1994, ficou a cargo dos mesmos policiais que planejaram e executaram a operação: os delegados Marcos Reimão e Ricardo Martins. As necrópsias revelaram que quatro dos mortos foram baleados na cabeça — um deles, Alex Fonseca da Costa, foi atingido por um tiro no peito e outro pelas costas, na nuca. Márcio Félix da Silva foi atingido dez vezes, sendo uma vez em cada mão. Na semana seguinte aos homicídios, entretanto, os responsáveis pela investigação determinam a instauração de uma “sindicância sumária” para outorgar “promoção por bravura” a todos os policiais envolvidos.

“APESAR DAS SUSPEITAS DE EXCESSOS POR PARTE DOS AGENTES, AS DUAS CHACINAS FORAM INVESTIGADAS PELOS MESMOS DELEGADOS QUE ORGANIZARAM E EXECUTARAM AS OPERAÇÕES POLICIAIS EM 1994 E 1995”

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Depois de colher os depoimentos dos policiais — que alegaram terem participado de um confronto com “marginais” numa casa usada como “fortaleza” pelo tráfico —, o delegado Ricardo Martins já queria encerrar o inquérito. Apenas quatro meses após os homicídios, ele assinou um relatório defendendo a “excludente de ilicitude da ação dos policiais, que em sua opinião teriam agido em legítima defesa”. Nenhum parente das vítimas havia sido sequer ouvido. O Ministério Público determinou que os autos voltassem à delegacia para que testemunhas fossem, ao menos, procuradas. Uma irmã de Alex Sandro Alves dos Reis, de 19 anos, alegou que ele prestava serviço militar à época e, na noite anterior, “perguntou onde ficava a favela Nova Brasília, pois pretendia ir a um baile funk”. O pai de Fábio Ribeiro Castor, de 20 anos, argumentou que o filho trabalhava como office boy e uma prima de Alex Fonseca Costa disse que ele trabalhava numa loja de sapatos. Nenhum tinha passagem pela polícia.

Colhidos os relatos, o inquérito passou a vagar por dezenas de gavetas pelos 13 anos seguintes, sem nenhuma nova diligência significativa. Em 2009, o MP pediu o encerramento à Justiça: “Arquive-se” foi a resposta.

As investigações das duas chacinas têm uma série de lacunas. Até hoje não se sabe a quantidade exata e a identificação de todos os policiais que participaram da primeira operação, em 1994. Os poucos agentes ouvidos citam de 40 a mais de 80 homens — da DRE, de outras três unidades da Polícia Civil e até policiais militares que chegaram a ser identificados pelas vítimas dos crimes. Segundo os inquéritos, os PMs participaram da ação “sem autorização do comando” da corporação. Ao todo, são mencionados e identificados 28 policiais.

As falhas são proporcionais à quantidade de delegados e promotores que foram responsáveis pelas investigações. Nas mais de duas décadas de tramitação, os inquéritos passaram por mais de 60 mãos. A chacina de 1994 gerou duas investigações que foram unificadas mais de dez anos depois dos crimes. A primeira, aberta pela DRE, foi conduzida por nove promotores e procuradores do MP do Rio e 12 delegados. Já a segunda, aberta meses depois, passou pelas gavetas de seis promotores e 12 delegados. Por fim, o inquérito que investigou a chacina de 1995 foi analisado por 13 promotores e 15 delegados.

A inércia das autoridades e a impunidade que se desenhava levaram os parentes das vítimas e as ONGs Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e Instituto de Estudos da Religião (Iser) a se mobilizarem para apresentar os casos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ainda em 1995. A comissão é um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) que acompanha denúncias relacionadas à violações de direitos humanos e faz recomendações aos Estados. Se não forem cumpridas, o caso então é levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que pode condenar o Estado para que as medidas sejam tomadas.

Foi o que aconteceu. Em 2011, a comissão recomendou que as duas investigações, que estavam arquivadas havia dois anos, fossem reabertas. Em janeiro de 2012, o MP reabriu o inquérito sobre os crimes de 1995 e em março de 2013 aquele relativo à chacina de 1994. Apenas dois meses depois — sem que fosse feita nenhuma nova diligência a fim de se identificarem outros responsáveis —, os promotores denunciaram à Justiça pelos 13 homicídios de 1994 quatro policiais civis e dois militares, os mesmos reconhecidos no mês seguinte aos crimes. Já o inquérito que apurava os crimes de 1995 foi novamente arquivado em maio de 2015, na véspera do dia em que completaria 20 anos. O MP alegou que, apesar de a necrópsia de algumas das vítimas indicarem que elas haviam sido executadas, não era possível identificar os autores.

No mesmo mês, a comissão, por entender que as recomendações não haviam sido atendidas pelo Estado brasileiro, apresentou o processo à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sentença saiu dois anos depois, em fevereiro de 2017, e determinou a condução, “exaustiva, imparcial e efetiva”, da investigação dos homicídios de 1994, a reabertura do inquérito da chacina de 1995 e o início de uma nova apuração para investigar, processar e eventualmente punir responsáveis pelos crimes sexuais denunciados pelas três jovens em 1994. O tribunal internacional também determinou a criação de metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial no estado do Rio e o pagamento de indenizações.

A condenação já gerou consequências. Em dezembro de 2019, o MP denunciou à Justiça o inspetor da Polícia Civil Rubens de Souza Bretas e o hoje ex-policial militar José Luiz Silva dos Santos pelos crimes sexuais contra as jovens. Na denúncia, os promotores Andréa Amin e Paulo Roberto Cunha Jr. defendem que a sentença da corte internacional “afastou a possibilidade de reconhecimento da prescrição”. A argumentação foi aceita pela juíza Daniella Alvarez Prado, que recebeu a denúncia no último dia 19 de junho e ainda determinou a proibição dos agentes de se aproximarem das vítimas. Os réus respondem por atentado violento ao pudor, já que os crimes foram cometidos antes da mudança na legislação que tipificou casos do tipo como estupro.

Seguindo a determinação da corte internacional, o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) do MP conseguiu avançar nas investigações e produzir uma nova prova 25 anos após os crimes. As vítimas foram encontradas novamente e submetidas a uma nova perícia, feita com a supervisão de especialistas internacionais, psicólogos e peritos com base em diretrizes impostas pelo Protocolo de Istambul — um manual para a investigação e documentação eficaz da tortura e outros tratamentos cruéis assinado pelo Brasil. O laudo revela que uma das meninas apresenta, até hoje, “um transtorno de estresse pós-traumático crônico, com sintomas depressivo e ansioso”. Segundo o documento “há consistência e coerência entre o relato dos fatos, as experiências traumáticas e os sintomas esperados em pessoas que sofreram eventos traumáticos descritos”.

Sobre o arquivamento do inquérito da chacina de 1995, o MP diz que, apesar de existirem indícios de execução, não é possível, depois de tantos anos, individualizar as condutas dos agentes. A ação já havia sido aberta e encerrada duas vezes — 2009 e 2015 — antes da sentença internacional. Mesmo após o apelo, o caso não avançou e foi novamente finalizado em março deste ano. Mais de 20 anos depois da morte de Cosme, sua irmã Tereza Genoveva ainda tem esperança de o caso ser esclarecido mesmo após o arquivamento. Há quatro anos, ela começou a cursar Direito, que concilia com o trabalho como gari. Quando terminar o curso, quer prestar concurso para a polícia. “Eu sonho com o dia em que eu mesma vou poder descobrir o que aconteceu”, disse ela.

Os agentes reconhecidos pelas três jovens em 1994 como autores de crimes sexuais e homicídios não pararam de cometer crimes após a chacina. A trajetória desses policiais é marcada por um rosário de denúncias nos últimos 26 anos. ÉPOCA conseguiu reconstituir a trajetória dos agentes, com base em processos judiciais e sindicâncias das polícias Civil e Militar. Dois deles foram assassinados após os homicídios. Outros três foram expulsos de suas corporações por desvios de conduta.

O ex-soldado Plínio Alberto dos Santos Oliveira, reconhecido pela adolescente de 15 anos como o homem que a levou à força para o banheiro e a estuprou, foi preso menos de um ano depois da chacina. Ele foi acusado, junto com três PMs e oito policiais civis, de sequestrar e extorquir um homem acusado de envolvimento com o tráfico, em abril de 1995. Em 2018, cinco anos depois de ser denunciado à Justiça pelos homicídios, ele foi assassinado a tiros em Coelho Neto, na Zona Norte do Rio. Nunca respondeu pelos crimes sexuais.

O ex-PM José Luiz Silva dos Santos — que à época era soldado do 23º BPM (Leblon) — é réu atualmente tanto pelos 13 homicídios quanto pelos crimes sexuais. Ele foi reconhecido por uma das jovens como um dos integrantes do grupo que entrou na casa, agrediu as vítimas e não fez nada para impedir os estupros. Santos foi expulso da PM mais de uma década depois do episódio, por envolvimento com uma milícia que explorava a instalação de TV a cabo clandestina, o popular “gatonet”, na comunidade César Maia, na Zona Oeste do Rio. Em 2018, foi condenado a três anos de prisão pelo crime de receptação.

O então inspetor Paulo Roberto Wilson da Silva, reconhecido como um dos agressores do jovem que foi encontrado morto depois de ser levado algemado, foi demitido da Polícia Civil após sua prisão em março de 2005, flagrado recebendo dinheiro proveniente da venda de um carro roubado. Ele é réu pelos 13 homicídios. Carlos Coelho Macedo, reconhecido como o agente que algemou o jovem que seria morto em seguida, também foi demitido da Polícia Civil por ter sido flagrado pela PF exigindo propina de traficantes. Ele foi condenado a cinco anos de prisão e expulso da corporação. Procurado, o órgão não quis comentar as falhas na investigação.

O detetive Wagner Castilho Leite foi reconhecido pelas testemunhas, mas não foi denunciado porque, um ano após a chacina, em outubro de 1996, foi executado, no Catumbi, Região Central do Rio. Seguem na Polícia Civil até hoje os inspetores Rubens de Souza Bretas e Ricardo Martins. Bretas é réu tanto pelos homicídios quanto pelos crime sexuais; Martins — que alega, mesmo lotado na DRE à época, não ter participado da operação nem estado na favela — só responde pelos assassinatos.

Um policial, apesar de identificado na época dos crimes, não foi sequer citado nos inquéritos. É justamente o agente acusado de ter disparado os tiros nos olhos de Evandro, o pai de Jaqueline Oliveira. Segundo o relato de uma das jovens, o assassino do protético era um PM que estava encapuzado na ocasião, de nome “Téo”. O agente teria afirmado, antes de atirar, que Evandro não seria mais “garanhão da favela”, por causa dos olhos azuis da vítima, da mesma cor que os do PM. Téo, na verdade, era Tell: Guilherme Tell Mega, à época soldado do 23º BPM, que havia trabalhado no Complexo do Alemão. Mega já foi citado antes, numa investigação de outra chacina, a da Candelária, em que oito jovens moradores de rua foram assassinados no centro do Rio em julho de 1993. Após a Nova Brasília, ele foi trabalhar no 9º BPM (Rocha Miranda) e integrou a mesma patrulha que Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do homicídio de Marielle Franco. Em agosto passado, Mega e Lessa viraram réus por um duplo homicídio no Parque Colúmbia, na Pavuna, na Zona Norte, cometido em setembro de 2000. A investigação revelou que os mortos foram executados depois de serem rendidos. Hoje, Mega está na reserva e recebe R$ 19.341,45 de aposentadoria do estado.

“APÓS PRESSÃO INTERNACIONAL, O MP DENUNCIOU À JUSTIÇA DOIS POLICIAIS PELOS CRIMES SEXUAIS CONTRA AS JOVENS. UM OUTRO SUSPEITO TEM LIGAÇÃO COM RONNIE LESSA, APONTADO COMO O EXECUTOR DO ASSASSINATO DE MARIELLE FRANCO”

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De 2017, ano da sentença da OEA, até 2019, mortes em ações da polícia aumentaram 60% no Rio e chegaram ao patamar mais alto da história do estado. E só 2,5% das apurações de homicídios por intervenção policial resultaram em denúncia. O MP do Rio instaurou inquérito para apurar se o estado do Rio de Janeiro cumpriu a sentença da OEA sobre medidas adotadas para redução da letalidade policial. Mas, segundo o órgão, as informações prestadas pelo governo “não se mostraram satisfatórias”. Para a promotora Eliane Pereira, coordenadora da Assessoria de Direitos Humanos e Minorias do MP, a sentença da corte ainda poderá trazer novas consequências. “A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, que gerou a decisão que suspendeu operações policiais em favelas no Rio durante a pandemia, é reflexo direto do descumprimento da sentença da corte. Não chegaríamos a esse ponto se o estado tivesse respeitado a decisão”, avalia. Pereira tem requerido ao governo que pontos simbólicos da decisão da OEA sejam cumpridos, como a realização de uma cerimônia de reconhecimento público pelo governador e inauguração de placas em memória das vítimas nos locais dos crimes. Até agora, nada foi feito.