João Tancredo – Escritório de Advocacia

Casos como o de Yago, preso sem provas no Jacarezinho, seguem sem reparação na Justiça

Por Selma Schmidt e Bárbara Souza – 11/02/2022 – Extra

Os gritos de “justiça” se repetem a cada manifestação. Foram ouvidos no coro de amigos e parentes que se mobilizaram em defesa do entregador Yago Corrêa de Souza, 21 anos, acusado por tráfico, preso sem provas no domingo passado e libertado há três dias. Sentimento parecido uniu pessoas em torno do garçom Patrick Gonçalves, 26 anos, que, naquele mesmo fim de semana, estava a caminho de ser detido por policiais sob a suspeita de ter cometido um roubo — quando, na verdade, descansava ao lado do quiosque em Ipanema onde trabalha. A família de Yago ainda comemora sua saída da prisão e se ocupa em livrá-lo do insustentável processo por tráfico, que segue. Sua irmã, Érika, também cogita, adiante, buscar alguma reparação oficial: “o mínimo que o estado pode fazer é indenizar o meu irmão”, diz. Parece simples, e justo, mas não é bem assim que funciona. São muitos os casos anteriores de pessoas, que, presas e condenadas por engano, simplesmente não conseguem nenhum tipo de reparação pelos danos sofridos. Muitos são pretos, como Yago e Patrick, deixando clara a prática do racismo estrutural.

O produtor de eventos Ângelo Gustavo Pereira Nobre, hoje com 30 anos, foi preso e condenado injustamente em 2020. Reconhecido como cúmplice no roubo de um colar, acabou sentenciado a três anos em regime semi-aberto, recorreu e teve a pena aumentada para seis anos em prisão fechada. Até agosto do ano passado, permaneceu 364 dias atrás das grades.

O produtor de eventos Ângelo Gustavo Pereira Nobre foi preso e condenado. Inocente, ficou 364 dias atrás das grades. Ele é negro, assim como o entregador Yago Corrêa de Souza, o garçom Patrick Gonçalves e tantos outros, presos injustamente, vários por reconhecimento fotográfico, deixando clara a prática do racismo estrutural.

— Não gosto de vitimizar. Mas se eu fosse branco de olhos azuis nada disso teria acontecido – diz Ângelo.

Enquanto inocentes — a grande maioria, prejulgada pela cor da pele — vivem a sensação de impunidade, a Defensoria Pública, juristas, a Ordem dos Advogados do Brasil e ONGs criticam a falta de sanções, além da dificuldade de processos de reparação de danos contra agentes, por prisão ilegal ou inquérito mal feito, terem um desfecho favorável às vítimas. Lamentam que erros do poder público sejam perdoados, mesmo quando pessoas, condenadas injustamente, conseguem, a duras penas, provar sua inocência. O que, dizem, acaba gerando um círculo vicioso, com erros sendo repetidos.

A prisão de Ângelo, agora com 30 anos de idade, foi em 2020, e a soltura só em agosto do ano passado. Ele foi reconhecido por uma mulher como cúmplice no roubo de um colar. Segundo ela, Ângelo estaria numa moto, quando uma outra pessoa teria arrancado o seu colar, puxando pela janela aberta do seu carro. Foi condenado a três anos em regime semiaberto, recorreu, e teve a pena aumentada para seis anos em prisão fechada.

— Sou inocente. Não tinha culpa no cartório, e não desisti. Na prisão, só pensava em sair, e de cabeça erguida. Com a ajuda da família e de um advogado criminal, que nada me cobrou, provei que estava em casa no dia do roubo. Tinha feito várias cirurgias invasivas no pulmão e não podia sair da cama — explica ele.

O produtor não abre mão da punição dos agentes públicos envolvidos no caso:

— O delegado fez um inquérito porco, não investigou, o MP aceitou a denúncia, e juízes me condenaram sem analisar como deveriam. Não estou querendo desmoralizar instituições. O que digo é que há pessoas nessas instituições que não gostam de trabalhar.

Yago: ‘em cárcere privado’

O medo de represália e a sensação de que os agentes públicos não serão punidos fez o garçom Patrick Gonçalves não levar adiante o caso. Ele recebeu voz de prisão, acusado de roubo sem provas, no momento em que tirava sua hora de almoço, ao lado do quiosque onde trabalha, em Ipanema. Foi orientado pela família a não mexer no assunto:

— Para ser sincero, queria abafar um pouco isso. Já falei com meus tios. Tenho um tio da polícia, outro advogado. Disseram para deixar isso um pouco quieto. Não adianta. Isso pode até causar prejuízo para mim. Vou muito na rua, entro em comunidade.

Já o entregador de doces Yago Corrêa de Souza, preso no Jacarezinho sob acusação de ligação com o tráfico quando comprava pão para um churrasco com os amigos, pretende responsabilizar o estado. Mas num segundo momento. Depois de ter conseguido tirá-lo da prisão, a luta hoje da família é limpar o nome do jovem.

— O mínimo que o estado pode fazer é indenizar o meu irmão. Isso será feito depois. Agora, a prioridade é limpar o nome dele. O meu irmão está com liberdade provisória. Estamos mantendo ele dentro de casa, com medo de que sofra algum tipo de represália. Saiu da prisão, mas está em cárcere privado. Perdeu o direito de ir e vir — conta a irmã Érica Corrêa de Souza.

Também negro, o motorista de aplicativo Antônio Carlos Rodrigues Júnior, de 47 anos, tenta, através de seus advogados, conseguir reparação por danos morais, desde que foi absolvido, em 2018. Ele tinha sido acusado de ter participado de um assalto à consulesa da Venezuela, no elevador do prédio do consulado, no Centro. A diplomata havia saído do banco e entrado no edifício.

Mesmo absolvido na Justiça criminal, Antônio Carlos teve negado o pedido de indenização por danos morais, em primeira e segunda instâncias no Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ). A advogada Mitfi Rocha Fidélis faz mais uma tentativa junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ):

— Tenho certeza que, por ser negro, o Antônio Carlos foi confundido com o verdadeiro assaltante. O erro maior foi acharem, na delegacia, que ele tinha a orelha e o nariz idênticos aos do assaltante do retrato falado.

Antônio Carlos havia sido preso na porta de casa, quando saía para trabalhar, após cerca um mês de investigações da polícia, sobretudo em redes sociais. Seus advogados conseguiram descobrir o verdadeiro autor do assalto, que estava preso em Bangu por outro delito. Como o homem preso acabou reconhecido pela vítima, Antônio Carlos foi solto, após ficar oito dias preso. Depois, foram mais três meses de angústia, esperando o julgamento no processo criminal, até ser absolvido.

— Sou alto e magro, o verdadeiro assaltante é baixo e gordinho. Como fui confundido? Por que sou negro, careca e tenho nariz pontiagudo? — questiona Antônio Carlos. — Estou mal até hoje. Quem comete algum tipo de delito tem que estar ciente do que está fazendo. Eu estava preso sem fazer nada. Passei a ter depressão, crise de ansiedade e transtorno pós-traumático, por causa do que passei.

Em primeira e segunda instâncias, o pedido de indenização foi negado, explica Mitfi, porque o Judiciário do Rio entendeu que a prisão foi legal:

— Para a Justiça do Rio, os policiais teriam que ter feito aquilo mesmo. Por isso, negaram o dano moral, o que é um absurdo.

‘Justiça conivente com a ilegalidade’

Para dar a dimensão da gravidade do problema, o advogado João Tancredo cita que nenhum dos cinco processos de indenização contra o estado por prisão ilegal que ele acompanha há anos — entre eles o de Ângelo — chegou ao final.

— Muitas das prisões são feitas sem qualquer indício mais concreto. A sala das delegacias onde vítimas fazem o reconhecimento do suposto autor do crime é uma ficção no Brasil. É para confundir mesmo. Na Justiça, os processos de indenização para reparação de danos por prisão ilegal se arrastam. Em todos, o estado alega que não pode ser responsabilizado. É a tríade que erra: polícia, MP e magistratura. A Justiça, inclusive, acaba sendo conivente com a ilegalidade. E os agentes públicos ficam impunes — diz Tancredo.

Negro como Ângelo, Tiago Gomes, morador de Mesquita, de 28 anos, viu sua vida virar dos pés a cabeça em 2016, quando foi chamado por um amigo para rebocar um carro. Ele não sabia que o carro era roubado, e acabou sendo acusado de receptação. Sua foto foi incluída no livro de suspeitos da 52ª DP (Nova Iguaçu), e mais nove acusações injustas contra ele apareceram. Ficou presos de 9 de março de 2018 a 15 de janeiro de 2019, quando ganhou liberdade provisória.

— Fui chamado para o julgamento e condenado a cinco anos e dois meses. Depois de 15 dias preso, me chamaram e disseram que houve um engano. Em setembro de 2019, a Defensoria, que vem acompanhando meu caso, conseguiu tirar o meu nome do livro da delegacia — respira Tiago, que trabalha com um tio numa serralheria e tem três filhos pequenos.

Para Tiago, não fosse a sua cor de pele e o fato de morar na Chatuba não teria passado por tantos dissabores. Ele ainda não decidiu sobre ingressar com ação por danos morais contra o estado:

— Muitas pessoas falam para eu correr atrás, mas não sei. Comecei a vida do zero quando fui absolvido, graças a Deus. Vivo uma vida de alegria hoje, esperando no Senhor.

Marco Aurélio Mello: responsabilização do estado

Com 42 anos de magistratura, sendo 31 no Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-ministro Marco Aurélio Mello defende a responsabilização do estado e a punição dos agentes públicos que prendem indevidamente. O Brasil, segundo ele, precisa avançar muito para chegar a um patamar satisfatório:

— Nos Estados Unidos, quem é preso injustamente tem uma ação indenizatória de tramitação célere. Quando você não responsabiliza, você flexibiliza a situação e leva realmente a exageros, desmandos. Temos que combater a delinquência? Temos. Mas como o previsto no figurino instrumental. Ou seja, exigindo-se, para uma condenação, a prova. A presunção de inocência milita a favor do acusado — diz ele. — Nos meus 42 anos como juiz, eu nunca vi capa de processo. Sempre julguei pelo conteúdo, e vinculado à legislação, aprovada pelo Congresso Nacional.

O ex-ministro citou ainda o princípio da culpabilidade, previsto na Constituição:

— A prova incumbe ao Ministério Público, que é o estado acusador. E tem que ser uma prova robusta para se condenar, para se retirar esse segundo bem maior que é a liberdade. O primeiro é a vida. O segundo bem maior é a liberdade do cidadão. Nós temos um número de presos incrível. E muitos recolhidos injustamente. Ou seja, tanto quanto possível, o cerceamento da liberdade deve ficar como razão última para corrigir esses rumos. A esperança no homem tem que existir.

‘Não consigo esquecer os momentos que passei’

Biazucci não é negro. Mas também tem uma história de injustiça. O caso aconteceu em 2013, mas até hoje o dentista André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso, que ficou quase sete meses preso, ainda não conseguiu ter o dano provocado por agentes públicos reparado. Foi uma longa batalha para provar sua inocência. Em outubro de 2013, à época com 26 anos, foi surpreendido por policiais civis à porta de sua casa, em Nova Iguaçu. Ele fora preso a partir de denúncia de estupro de uma mulher, que teria o identificado na rua e informou à polícia a placa de seu carro. Na Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Belford Roxo, sete mulheres o reconheceram como estuprador. Depois de condenado pela Justiça, materiais biológicos recolhidos nas mulheres e do acusado foram levados para exame de DNA, ficando comprovado que o dentista não era o estuprador. E, finalmente, foi absolvido.

— Sou careca. Mas, mesmo nos depoimentos me descrevendo como pardo e ruivo, mulheres disseram, por fotos e pessoalmente, que eu era o estuprador — lembra Biazucci. — Quando saí da prisão, fiquei um bom tempo assustado, quase não saía de casa, fiquei mais reservado. Já tem mais de sete anos que fui inocentado, mas não consigo esquecer os momentos que passei. Nunca vou conseguir. Lembro todos os dias.

O início do processo de indenização em favor de Biazucci é de 2014. Agora, seu advogado João Tancredo aguarda decisão sobre um pedido de isenção do pagamento de taxas: as custas judiciais do processo ultrapassam R$ 30 mil.

Condenado injustamente, o dentista passou pelos presídios Patrícia Acioli, Thiago Telles e Bangu 8.

— Quero justiça — diz ele, que era noivo quando foi preso. — Minha família e minha noiva ficaram abalados à época, mas nunca deixaram de acreditar em mim.

‘Difícil obter ganho de causa’

Parte dos erros de prisões nos últimos anos no Rio foram causados pelo reconhecimento fotográfico errôneo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) chegou a estipular que o reconhecimento de um suspeito de um crime por meio de foto não pode ser usado como prova na ação penal. Diante disso, o TJRJ recomendou, em janeiro, que os juízes do estado reavaliem com urgência os casos em que acusados foram presos com base apenas em reconhecimento fotográfico.

Números mostram a gravidade da questão. Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio, juntamente com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE), mostra que, de 2012 a 2020, foram feitas 90 prisões injustas baseadas no reconhecimento por fotos, sendo 73 no Rio. Destas, 81% são acusados negros, e a ampla maioria eram suspeitos de roubos.

Contudo, conforme a defensora pública Samantha Oliveira, do Núcleo de Fazenda Pública da instituição, em geral as vítimas não recorrem ao órgão para ingressar com ação de indenização por prisão ilegal:

— Podem tentar através de advogados e entidades de Direitos Humanos. Não costumam recorrer à Defensoria. De qualquer forma, é muito difícil obter ganho de causa em casos como esses Lembro de um processo, de 2008. O rapaz, usuário de entorpecente, foi preso. Cumpriu medida e saiu. Não conseguimos tirar a foto dele do livro de suspeitos. Tampouco a indenização por danos morais. A Justiça negou nossos pedidos.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB-RJ, Álvaro Quintão acompanhou quatro casos de pessoas foram presas por engano após terem sido reconhecidas por fotos. Em nenhum deles houve qualquer punição dos agentes públicos envolvidos:

— Eu não conheço nenhum caso em que o agente que praticou atos desse tipo que tenha sido responsabilizado. O reconhecimento fotográfico, por exemplo, normalmente começa com um agente na delegacia, que apresenta uma foto em que a pessoa é reconhecida. A delegacia apresenta ao Ministério Público, que pede a prisão, depois determinada pelo juiz. Quando se descobre que se tratou de um erro, vira um jogo de empurra. A delegacia diz que foi a vítima que reconheceu, o MP diz que foi o inquérito da polícia. A Justiça diz que o Ministério Público que pediu.

Coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec), a cientista social Silvia Ramos avalia que uma das raízes do problema está no entendimento equivocado do conceito de fé pública:

— O policial pode chegar a uma delegacia, dizer que a pessoa foi presa porque, por exemplo, faz parte de um grupo criminoso, xingou um policial ou reagiu à prisão. Isso tem que ser questionado. Muitos policiais aprendem na academia que a palavra deles na delegacia vale mais do que a da vítima. Isso é uma distorção. Temos que questionar porque o delegado sempre acredita na palavra do policial e não percebe que, muitas vezes, o militar quer que aquela pessoa seja vista como suspeita ou criminosa.

A cientista política lembra que o conceito de fé pública era usado para um tabelião concluir que aquele documento que ele estava vendo era idêntico ao documento original e, assim, ele dava fé de que aquilo era verdade. Ramos observa que o conceito se alastrou e foi distorcido.

— O que a gente sabe é que a PM aplica muitas punições administrativas por indisciplina, por não ter batido continência para um oficial, por causa de sapato sujo, por falta de quepe. Mas não temos notícia de punições quando um policial abusa da força, agride ou xinga alguém — lamenta.

Falha na lei e corporativismo

Para o ex-comandante da PM, o coronel da reserva Ubiratan Angelo, que é negro, falhas na legislação e no sistema criminal fazem com que pessoas inocentes sejam presas:

— O artigo 302 do Código de Processo Penal, por exemplo, dá ao agente público e a qualquer cidadão, o direito a prender em flagrante só por suspeição, por circunstância que leve a crer. Confere essa autoridade. Veja o caso do rapaz que foi preso, acusado pelos donos do roubo de uma bicicleta no Leblon. Encontraram o verdadeiro autor do crime, mas o rapaz ficou preso dias, aguardando ordem judicial para soltá-lo. Prender é mais rápido que soltar.

O coronel defende mudanças tanto na legislação, como no sistema criminal:

— A prisão em flagrante, como é hoje, faz com que o agente prenda com base em conceitos, preconceitos e percepções. A lei facilita isso. É só ver que a maioria dos presos é negra e pobre.

Assim como Ubiratan, o também coronel da reserva da PM Robson Rodrigues, que já esteve à frente do Estado Maior da corporação, destaca que, no nível administrativo, a polícia aplica punições, como advertências, suspensão e até exclusão. Rodrigues, no entanto, reconhece que ocorre corporativismo:

— A administração acaba se autoacusando, tomando para si responsabilidade. Pensa em erro de qualificação ou controle, que algo na máquina não está funcionando bem. Faz uma mea culpa.

Quanto à sanção por danos morais, ele acentua que cabe a advogados agirem, e à Justiça, decidir. No caso de processo criminal visando a punição de algum agente, o coronel da reserva também ressalta que a responsabilidade é da Justiça criminal.

Em nota, o TJRJ afirma que os inquéritos feitos pela polícia são encaminhados ao Ministério Público. “Cabe ao MP a apresentação ao Tribunal de Justiça dos inquéritos já concluídos na forma de denúncia dos acusados”, acrescenta.

As secretarias de Polícia Civil e de Polícia Militar não responderam aos questionamentos sobre punições administrativas aplicadas contra policiais que cometeram os erros e se eventuais danos praticados são reparados.