Por Juliana Dal Piva, José Dacau, Bárbara Libório, Naomi Matsui e Rubens Valente – UOL – 07/06/2022
Esta reportagem integra o especial “Armas não letais que matam: repressão policial deixa mortos e feridos na América Latina, enquanto governos enriquecem empresa brasileira“
Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos e portador de uma doença mental, morreu após ser imobilizado e trancado em uma viatura enquanto policiais bombeavam um gás para dentro do carro.
Edvaldo da Silva Alves, 19 anos, morreu depois de levar um tiro de bala de borracha à queima-roupa na virilha, durante uma manifestação na cidade de Itambé, no interior de Pernambuco. Quatro anos depois, também em Pernambuco, Daniel da Silva Campelo, 51 anos, perdeu a visão do olho esquerdo ao ser ferido por uma bala de borracha durante um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), no Recife.
O indígena Querino Carvalho Kaingang, 78 anos, levou uma dezena de tiros de munições de borracha durante uma disputa de terra, no Rio Grande do Sul.
Essas são algumas das vítimas das ditas armas “não letais”. Morrer ou ficar gravemente ferido pelas consequências de uma bala de borracha, de uma bomba de gás ou pelo uso de uma pistola taser é menos incomum do que se imagina. O que também coloca em xeque o próprio uso da expressão “não letal”, tão divulgado no marketing das empresas do setor.
Nesta investigação, por exemplo, foram identificadas algumas vítimas feridas gravemente com armas da Condor. Um olhar atento sobre as consequências dessas armas também mostra que elas atingem um conjunto bastante diverso. Vai de jovens em bailes funk, manifestantes em protestos sociais —seja na cidade ou em comunidades indígenas—, pessoas abordadas pela polícia e até os próprios policiais.
Mas, com frequência, essas armas ferem pessoas que somente tiveram o azar de passar perto da polícia na repressão durante algum evento.
A história dessas vítimas de armas “não letais” no Brasil integra a investigação colaborativa e transfronteiriça liderada pelo CLIP (Centro Latino-Americano de Pesquisas Jornalísticas), em parceria com o UOL e outros dez meios de comunicação na América Latina e nos Estados Unidos. A lista completa traz, pelo menos, 203 pessoas contabilizadas entre 2017 e 2022.
Um dos casos mais recentes de mortes com uso de “armas não letais” no Brasil ocorreu com Genivaldo de Jesus Santos, 38. Ele foi parado por policiais rodoviários federais no município de Umbaúba, litoral sul de Sergipe, em 26 de maio de 2022. Genivaldo estava em uma moto quando foi abordado em uma blitz na BR-101. Depois de algum tempo, foi imobilizado pelos policiais. Em vídeos que circularam nas redes, foi possível ver pessoas dizendo aos policiais que ele tinha problemas mentais. Wallison de Jesus Santos contou ao UOL que o tio chegava a carregar junto seus remédios.
Alguns minutos adiante, Genivaldo foi jogado no porta-malas da viatura. Em um vídeo que circulou na internet, foi gravado o momento em que ele estava preso no porta-malas da viatura e, pelas frestas da porta traseira, mantida semifechada, surgiu uma fumaça. Ao mesmo tempo, era possível ver Genivaldo se debatendo com as pernas balançando em desespero, enquanto gritava no interior da viatura. Um dos policiais chegou a segurar as pernas dele enquanto o outro bombeava gás para dentro da viatura por uma das frestas.
Minutos depois, um familiar se aproximou e os policiais levaram Genivaldo a uma unidade de saúde local, mas ele já estava morto. Segundo laudo do IML (Instituto Médico Legal), a causa da morte foi “insuficiência aguda secundária a asfixia”. Foi aberta uma investigação sobre o caso.
A reportagem questionou a Polícia Rodoviária Federal sobre a marca do gás lacrimogêneo usado por agentes da instituição no caso que resultou na morte de Genivaldo, mas não obteve resposta. A reportagem identificou, no entanto, que o órgão costuma usar equipamentos da Condor. De 2018 a 2020, a PRF fechou 16 contratos com a empresa, em um valor total de R$ 6,6 milhões.
O Brasil, porém, contabiliza diversas vítimas desse tipo de armas “não letais” desde o período dos protestos massivos a partir das chamadas jornadas de junho, em 2013.
Na ocasião, um levantamento da ONG internacional de Direitos Humanos Article 19, mostrou que 837 pessoas foram feridas por forças policiais no Brasil durante as manifestações de 2013. Um caso se tornou símbolo na época: o fotógrafo Sérgio Silva foi atingido por uma bala de borracha e perdeu a visão do olho esquerdo durante a cobertura do MPL (Movimento Passe Livre) em junho de 2013, no centro de São Paulo.
Antes dele, Alex Silveira, outro fotojornalista, também ficou cego durante uma greve, após ser atingido por um artefato semelhante, em 2000. Depois de 20 anos aguardando uma indenização do estado de São Paulo pelo ferimento, Silveira obteve uma decisão favorável no STF (Supremo Tribunal Federal), no fim de 2021. A sentença deve favorecer Silva, que também aguarda o julgamento de um recurso semelhante. Seu pedido foi negado no Judiciário paulista em duas instâncias.
Violência em Pernambuco
Em 2017, o estudante Edvaldo da Silva Alves, 19, se tornou uma vítima brutal da violência e do despreparo policial. Ele participava da manifestação realizada na rodovia PE-75, na cidade pernambucana de Itambé, para reivindicar mais segurança. Era um movimento pequeno e pacífico. Um vídeo que circula nas redes sociais registrou passo a passo como tudo aconteceu.
Em certo momento, uma viatura da polícia apareceu para liberar a via e Alves, junto com uma mulher, discutiram com um policial militar. No vídeo, é possível ouvir um dos policiais dizendo: “É esse quem vai levar um tiro primeiro?”. O policial deu as costas para os dois e chamou um colega armado com uma espingarda calibre 12 da marca CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos). Esse PM apontou para Alves e disparou à queima-roupa a menos de dois metros.
O rapaz foi ferido na virilha da perna esquerda por uma bala de borracha e imediatamente começou a sangrar caído no chão. Na sequência, os PMs deram tapas em seu rosto e o arrastaram pelo chão em direção a uma caminhonete. Com muita gritaria ao redor, devido à truculência, ele foi socorrido e levado ao pronto-socorro local. Mas não resistiu à gravidade do ferimento e morreu um mês depois.
O caso gerou tamanha revolta na população local que terminou na delegacia. Um inquérito foi instaurado e os policiais acabaram denunciados por homicídio doloso, quando há intenção de matar. Foram quatro policiais que se tornaram réus, mas dois, acusados de omissão no socorro, tiveram a extinção de punibilidade em outubro de 2020, após concordarem em pagar uma indenização às vítimas.
Sobraram Ivaldo Batista de Souza Júnior, que fez o disparo, e Ramon Tadeu Silva Cazé, que comandava a operação e deu a ordem a Ivaldo. A expectativa é que os dois fossem a júri popular, mas a Comarca de Itambé informou que os dois apresentaram recurso e o caso deve seguir para a segunda instância no Recife.
Um Conselho de Justificação, em curso no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), ainda decidirá sobre a incapacidade do oficial de permanecer na corporação. Por sua vez, o soldado que obedeceu à ordem do oficial foi punido com prisão por 30 dias. Em 16 de junho de 2017, foi firmado um acordo de reparação à família da vítima, com indenização por danos morais e pagamento de pensão aos pais do jovem por danos materiais.
O caso do estudante, apesar da repercussão local, não mudou a situação de violência da PM de Pernambuco. No ano passado, o comandante-geral da Polícia Militar do estado, Vanildo Maranhão, foi exonerado três dias depois da excessiva violência em um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro (PL), no Recife.
O relato a seguir é de Daniel da Silva Campelo, ferido durante a manifestação. À época, ele trabalhava adesivando táxis. No dia da manifestação, ele foi ao centro da cidade de ônibus para comprar material. No meio do caminho, na ponte Duarte Coelho, deixou o coletivo devido ao trânsito e saiu andando, mas deu de cara com a polícia de um lado e os manifestantes do outro.
“Quando eu visualizo o Batalhão de Choque, a primeira ação é levantar as mãos nesse sentido —abertas e com os braços para o alto. Tipo, você com as duas mãos levantadas, você não oferece risco a ninguém, eu acho. Aí eu falo para eles [policiais militares]: eu sou trabalhador, sou pai de família, eu não tenho nada a ver com isso [protesto]”, conta.
Mesmo assim, os PMs abriram fogo. Um disparo atrás do outro, em direção à multidão que tentava ocupar a ponte. Campelo foi atingido por um tiro de munição de elastômero —conhecida popularmente como bala de borracha— no olho esquerdo. Ele foi levado ao hospital mais próximo, onde recebeu a notícia que perdeu 100% da visão daquele olho.
O laudo do Instituto de Criminalística da Polícia Científica e o relatório da Polícia Militar, a que o UOL teve acesso, conseguiram apontar o PM que fez o disparo que cegou Campelo. Segundo o documento é o 3º sargento do Batalhão de Choque Jairton Galdino da Silva. Ainda segundo a perícia, que analisou diversos vídeos, o sargento apontou a arma e, num intervalo de apenas cinco segundos, efetuou quatro disparos com uma arma carregada com munição modelo AM-403/P, da fabricante Condor.
Por causa dessa dinâmica, os investigadores avaliaram o caso como um crime culposo (ou seja, sem intenção) tipificado no art. 210 do Código Penal Militar —lesão corporal culposa— com pena de detenção que varia entre dois meses a um ano.
No mesmo protesto contra Bolsonaro, Jonas Correia de França, 29, foi outra vítima de uma bala de borracha e também perdeu a visão do olho esquerdo. Como Daniel, ele só estava passando no local e mesmo assim foi atingido.
Os documentos da polícia pernambucana apontaram que o 3º sargento Reinaldo Belmiro Lins foi quem fez o disparo que acertou França. Ele era o único policial que portava a arma AM 404-12E, da fabricante Condor, carregada com munição de elastômero.
Segundo os relatórios policiais obtidos pelo UOL, o uso desse tipo de armamento tem que ser feito a uma distância superior a 20 metros do alvo. A análise dos peritos constatou que o tiro de elastômero dado por Belmiro estava abaixo da chamada “distância de segurança”.
Por esse motivo, o sargento foi indiciado no art. 209 do Código Penal Militar: ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, com pena de detenção de três meses a um ano. Outras duas pessoas ficaram feridas naquele protesto com o mesmo tipo de munição, mas sem maior gravidade.
Segundo o governo de Pernambuco, no caso de Campelo, a Polícia Civil indiciou um policial do Batalhão de Choque, por lesão corporal gravíssima e omissão de socorro, e oito policiais, por omissão de socorro. No caso de França, o PM autor do disparo foi indiciado por lesão corporal gravíssima e omissão de socorro.
O Inquérito Policial Militar instaurado está em fase de conclusão. Dezesseis PMs continuam afastados de suas funções —um deles cumpre afastamento cautelar, com recolhimento de armamento e carteira funcional.
Em 6 de agosto de 2021, o estado de Pernambuco firmou um acordo de reparação com França, com indenização por danos morais e materiais. Em relação a Campelo, o estado não obteve retorno da proposta de reparação por danos morais e materiais apresentada à vítima e aos seus advogados.
Em nota, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos disse que tomou providências necessárias no que diz respeito à assistência médica, jurídica, psicológica e socioassistencial às vítimas e suas famílias. O governo realizou integralmente o pagamento de três parcelas de benefício eventual a Campelo e França.
Um dado que chama a atenção é que as próprias empresas, inclusive a Condor, informam sobre a necessidade de treinamento antes da utilização dessas armas. No caso das balas de borracha, há informes públicos de que elas não devem ser disparadas em alturas superiores à cintura. Nos dados específicos das balas de borracha, a Condor informa: “Disparos somente abaixo da linha da cintura ou poderá causar ferimentos graves ou morte”.
Mesmo assim, não é incomum encontrar pessoas atingidas nos olhos durante protestos. Em 2014, o motoboy Maycon Gonçalves Mello, 25, perdeu a visão do olho esquerdo durante o confronto entre policiais e moradores numa reintegração de posse na comunidade Rato Molhado, no Engenho Novo, na zona norte do Rio de Janeiro.
Na confusão, uma moradora pediu ajuda para socorrer a sua filha que havia machucado um dos pés. Mello ficou de levá-la ao pronto-socorro. Mas, para sair, os três tinham de passar pela barreira policial. “Eu não oferecia perigo. Estava avisando que estava passando para socorrer uma moradora. Quando me aproximei, um dos policiais atirou e acertou o meu olho. Sangrou muito na hora”, lembrou o motoboy, atingido por uma bala de borracha.
Por causa da sequela, a falta da visão normal nos dois olhos, ele contou que não consegue mais arrumar emprego com carteira assinada. “Tenho família para sustentar. Hoje vivo de bico. Fazendo entrega de mercadoria por aplicativo”, disse Mello. Os advogados João Tancredo e Eduardo Cruz representam Maycon em um pedido de indenização ao estado do Rio de Janeiro que ainda não foi julgado.
Conflito no campo
Em 2018, famílias indígenas kaingang ocuparam uma fazenda usada para treinamento da Brigada Militar, em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Não houve acordo para uma saída pacífica.
Segundo a SSP (Secretaria da Segurança Pública) gaúcha, os indígenas “investiram contra a guarnição com pedaços de paus e pedra”. Os policiais revidaram. Testemunhas contaram que foi o contrário, que os policiais partiram para cima. Cinco indígenas e dois PMs saíram feridos. No final do confronto, as famílias deixaram a área invadida.
Entre as vítimas, estava o índio Querino Carvalho, 78. Ele levou diversos disparos de balas de borracha. O número exato varia de 19 a 24, de acordo com relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do Conselho de Direitos Humanos do estado, entidades que acompanharam o caso.
Segundo relato de Querino, os tiros vieram após um policial disparar contra seu filho. Querino pegou uma madeira e agrediu o policial. Um grupo de policiais derrubou o idoso e depois o segurou pela garganta. Imobilizado no chão, ele levou os tiros, um deles perto do ouvido. Ele contou ter desmaiado e, depois disso, passou a ter problemas de audição. Outros indígenas presentes e laudos corroboram o relato.
Querino foi algemado e levado sangrando para a 1ª Delegacia de Polícia de Passo Fundo. Durante o trajeto, sofreu mais agressões. Ficou detido por seis ou sete horas.
Questionada na ocasião, a Brigada Militar disse que a ação era uma reintegração de posse e que cerca de 40 indígenas estavam no local, entre adultos e crianças. A Brigada diz que o grupo, liderado por Querino, não aceitou a ordem de saída e foi de encontro aos policiais com pedaços de paus e pedras. Os laudos mostram 23 lesões no corpo de Querino: nas pernas, braços, abdômen, tórax e no ouvido esquerdo.
O relatório aponta que na ação da Brigada foram feitos 149 disparos de armas calibre 12 com munição antimotim de projéteis plásticos ou de borracha (munições LD e MD); 14 granadas variadas, entre gás lacrimogêneo e até a GL-307, de luz e som, mesmo modelo que feriu um policial durante testes da PM de São Paulo.
Um IPM (Inquérito Policial Militar) foi instaurado pela própria Brigada Militar e concluiu que a atuação “foi pautada dentro do estrito cumprimento do dever legal seguido da legítima defesa”. O caso foi arquivado sete meses depois do ocorrido.
Baile funk
Em dezembro de 2019, nove pessoas morreram asfixiadas durante uma ação da Polícia Militar contra frequentadores de um baile funk na comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. Vinte pessoas ficaram feridas. Duas foram internadas.
De acordo com a polícia, dois rapazes passaram em uma moto atirando contra PMs que faziam a Operação Pancadão –para coibir a realização de bailes funk. Cerca de 5.000 pessoas estavam nas ruas da segunda maior comunidade do estado de São Paulo.
Os policiais perseguiram a dupla, o que teria começado a confusão. Para dispersar o baile, foram utilizadas armas com bala de borracha, gás de pimenta, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo.
Na correria, um grupo de pessoas —a maioria jovens— ficou confinada numa viela. Várias foram pisoteadas. A investigação do caso descobriu que, entre as granadas utilizadas, estavam duas granadas GL-307 e uma GL-203-L, respectivamente “luz e som” e lacrimogênea, ambas de produção exclusiva da Condor e mesmo modelo reprovado nos testes da PM paulista em 2020.
No entendimento do coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, Davi Quintanilha, a utilização principalmente desses dois tipos de bombas foi equivocada. “Esse armamento tem como objetivo dispersar uma multidão, mas em local em que exista uma rota de fuga. O que fica comprometido em áreas de comunidade, que tem ruas estreitas e vielas. Isso resultou no confinamento das vítimas e teria ocasionado as mortes”, disse Quintanilha.
O processo ainda corre na Justiça. No ano passado, o Ministério Público Estadual denunciou 12 PMs por homicídio com dolo eventual —quando se assume o risco de matar.
Em defesa do filho
No ano passado, Maria Célia de Jesus Gomes, 49, levou um tiro de bala de borracha à queima-roupa ao bater boca com um policial militar, na cidade de Passos, em Minas Gerais. Ela foi ferida no estômago e passou por cirurgia.
A discussão começou durante uma abordagem policial ao filho de Maria Célia. Houve bate-boca e um dos PMs sacou a arma e fez o disparo. Ferida, a mulher andou em direção a casa dela e foi amparada pelo marido. O rapaz acabou detido.
* Colaborou Igor Mello, do UOL, no Rio.