Por Rafael Soares – O Globo – 07/05/2022
Um ano após a operação mais letal da história do Rio, as investigações sobre as 28 mortes no Jacarezinho chegaram ao fim. Quatro homicídios geraram denúncias à Justiça: o do policial André Frias, assassinado por traficantes, e outros três casos em que a Força-Tarefa formada pelo Ministério Público para investigar a ação concluiu que policiais não agiram em legítima defesa. Os inquéritos das outras 24 mortes foram arquivados. No entanto, mesmo os casos que não culminaram em processos judiciais têm indícios de execução, contradições nos depoimentos dos agentes e provas testemunhais e periciais que contestam a versão oficial de tiroteio, como mostra uma análise feita pelo GLOBO com base em documentos das investigações.
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Um dos inquéritos em que o policial investigado mudou sua versão foi o que investigou as mortes de Caio da Silva Figueiredo, de 16 anos, e Francisco Fábio Dias Araújo Chaves, de 25. Segundo o registro de ocorrência, os dois foram mortos por volta das 7h numa casa na Rua do Areal. Horas depois da operação, um dos policiais investigados pelo crime, o investigador Anderson Paes da Silva, afirmou, na Delegacia de Homicídios (DH), que foi alvo de “rajadas de tiros” e, por isso, ele e um colega teriam revidado a “injusta agressão”. Em seguida, segundo essa primeira versão, os agentes encontraram os dois homens feridos.
Entretanto, a perícia feita na casa no dia dos homicídios não encontrou sinais de que houve um tiroteio no local — não havia marcas de tiros em sentidos opostos. Num segundo depoimento, prestado oito dias depois, o agente mudou a versão e afirmou que os homens não chegaram a atirar nos policiais: ele alegou que atirou porque que um dos homens estava “apontando uma pistola” em sua direção e o outro segurava uma granada, “fazendo menção a arrancar o grampo de segurança”.
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Além da mudança de versões, o inquérito tem outra prova que refuta o relato de confronto: em depoimento ao MP, um morador da casa onde os homicídios aconteceram acusa os policiais de terem executado as vítimas. O homem, que hoje não mora mais no Jacarezinho por medo de represália dos agentes, afirmou que “dois homens rendidos e desarmados passaram a ser ali alvejados pelos policiais”. A testemunha prestou dois relatos ao MP e também mudou sua versão. No primeiro, disse ter visto uma das vítimas ajoelhada e outra em pé no momento em que foram atingidas; no segundo, disse que os dois policiais estavam sentados. Ao GLOBO, o homem contou que não consegue precisar como estavam os homens no momento dos disparos, “porque tudo aconteceu muito rápido, mas os dois estavam cercados por mais de dez policiais, não poderiam reagir”.
Ao arquivar a investigação, os promotores da Força-Tarefa não mencionaram a mudança de versão do policial e citaram a “perfeita convergência nos relatos dos policiais negando abuso e descrevendo cenário de legítima defesa”. No mesmo documento, os depoimentos do morador da casa são considerados “vacilantes e inconsistentes”.
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Um dos homens mortos e acusado de atirar contra os policiais não tinha sequer condição de segurar uma arma. Carlos Ivan Avelino da Costa Junior, morto num beco da favela, tinha “sequelas decorrentes da lesão no plexo braquial, que inviabilizaram a função do membro superior” — o que não permitia que ele portasse “arma longa ou acionasse granadas”, conforme os promotores escreveram na promoção de arquivamento do inquérito. Na DH, nas semanas seguintes à operação, dois policiais afirmaram que viram o homem armado. Um deles disse ter reconhecido Carlos Ivan como “um dos elementos que estavam efetuando disparos de arma de fogo” contra os policiais.
Após a Força-Tarefa ter descoberto que o homem não podia portar uma arma, os policiais foram ouvidos novamente no MP e mudaram suas versões: ambos alegaram que Carlos “estaria ao lado de ao menos outros dois homens que confrontavam os agentes estatais, sendo que Carlos Ivan não portava arma longa”. Mesmo diante das mudanças nos relatos, o caso foi arquivado.
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Em outro inquérito, apesar de uma testemunha afirmar que a vítima foi morta por policiais, os promotores alegaram, ao arquivarem o caso, que não conseguiram precisar de onde partiram os disparos. Matheus Gomes dos Santos foi encontrado por policiais já baleado e sentado numa cadeira na favela. Os agentes afirmaram que não atiraram em Matheus.
Um homem preso durante a ação, no entanto, alegou, em depoimento ao MP, que “policiais deram um tiro nele, no peito” e, em seguida, a população tentou socorrê-lo. Ele disse que viu Matheus sendo colocado na cadeira por moradores da favela. Os promotores não conseguiram outra prova que confirmasse o relato do preso: “ao que tudo indica, Matheus foi alvejado durante uma troca de tiros entre traficantes e policiais — não se sabendo quem foi o autor dos disparos que acertaram a vítima”, afirmou a Força-Tarefa na promoção de arquivamento.
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Para a advogada Luísa Capanema Vieira, que representa a família de vários dos mortos na operação, o MP privilegiou as provas testemunhais em detrimento de outras evidências colhidas para arquivar os inquéritos.
— A testemunha é o próprio morador da comunidade, que convive com um cenário de intimidação e opressão policial. E esse fato é desconsiderado. As demais provas produzidas e documentadas nos procedimentos investigatórios não são consideradas suficientes para oferecimento e embasamento de denúncia — afirma a advogada.
Em outro dos casos arquivados, os policiais demoraram cinco horas para socorrer um homem atingido por cinco tiros — na barriga e no braço — que estava com as vísceras expostas. Segundo o registro de ocorrência, Luiz Augusto Oliveira de Faria, de 40 anos, foi baleado entre 6h30 e 7h no Beco da Zélia, no Jacarezinho. Segundo o Hospital municipal Souza Aguiar, o homem deu entrada na unidade, já morto, às 12h04. O laudo de necrópsia de Faria constatou “evisceração de alças intestinais” — ou seja, órgãos para fora do corpo — e lesões no coração , pulmão, fígado e baço.
Como o corpo foi retirado, não houve perícia no local do crime. Segundo os policiais, o resgate pôde ser feito com mais rapidez por conta do clima hostil da favela. A Força-Tarefa do MP, alegou, no arquivamento do inquérito, que “nem mesmo a possibilidade em aberto de que a remoção tenha se dado com o confrontante já em óbito não enseja concluir relevância penal em tese por eventual alteração da cena”. Os policiais não foram denunciados por modificarem a cena do crime, apesar de todos os corpos terem sido retirados dos locais de crime.
Em comparação, o socorro do policial André Frias, morto por traficantes naquele dia, demorou menos de uma hora: ele foi baleado por volta das 6h e apenas 46 minutos depois deu entrada no Hospital Salgado Filho.
Segundo o promotor André Cardoso, que coordenou a Força-Tarefa, as investigações arquivadas não geraram provas que convenceram os promotores de que houve excesso ou execução. Ao todo, 72 depoimentos foram prestados e 161 tentativas de contato com outras testemunhas foram feitas, sem sucesso. No entanto, as investigações arquivadas ainda poderão ser reabertas, caso surja alguma nova prova.