Por Saulo Pereira Guimarães – O Globo – 27/09/2019
RIO – Um levantamento da ONG Rio de Paz indica que 52% das crianças mortas por balas perdidas no estado do Rio entre 2007 (ano de criação da ONG) e setembro de 2019 foram vítimas de tiroteios entre policiais e bandidos. A pesquisa usou como base 57 casos noticiados pela imprensa no período. Ainda de acordo com a análise, 82% das ocorrências foram registradas em favelas. São casos como o do menino Kauan Peixoto, de 12 anos, morto por agentes da PM com três tiros na comunidade da Chatuba, no último dia 16 de março, quando ia comprar um lanche.
— Não recebi nenhuma ajuda ou esclarecimento do Estado nesses seis meses. Alguns policiais foram ouvidos, mas não surgiu nenhuma novidade. Nem o estado nem a polícia me deram uma explicação para o que aconteceu naquele dia – conta Luciana Pimenta, mãe de Kauan, que passou a frequentar um grupo de mães que perderam seus filhos por conta da violência na Maré após o episódio — Lá, aprendi a deixar meu luto para lutar.
Em quatro dos 57 casos analisados, as crianças estavam indo, vindo ou dentro de uma escola. Em outros seis, viajavam em carros e, em 16, estavam em casa.
Complexo do Alemão lidera com seis mortes
O Complexo do Alemão foi a localidade com o maior número de ocorrências: 6, ao todo. O Complexo da Maré e o bairro de Costa Barros, na Zona Norte, e as cidades de Duque de Caxias e de São Gonçalo registraram três casos cada um. No município da Baixada, uma das situações registradas foi a do bebê Arthur Cosme de Melo, baleado antes mesmo de nascer quando a mãe foi surpreendida por uma troca de tiros na Favela do Lixão.
— Esses números mostram que esse é um drama vivido quase que exclusivamente pelo morador de favela. Certamente, esse é o motivo de nenhuma dessas mortes ter causado mudança nas políticas de segurança pública – afirma Antônio Carlos Costa, presidente do Rio de Paz – O tiroteio nessas áreas tão densamente povoadas é uma irresponsabilidade.
Zona Norte (54%), Baixada (18%) e Zona Oeste (11%) foram as regiões que mais concentraram assassinatos. Chama atenção o aumento no número de registros nos últimos anos. Em 2014, foram dois. Em 2016, 2017 e 2018, 10. Cinco até setembro deste ano. A maioria dos mortos eram meninos (59%), pretos (56%) e com idade entre 7 e 14 anos (70%). A parte do corpo atingida com mais frequência foi a cabeça, ferida em 19 dos 57 casos.
Procurada, a Polícia Militar informou por meio de nota que “não há como comentar o referido levantamento por não se basear nos dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP)”. Vale lembrar que os casos analisados dizem respeito apenas às mortes de crianças por balas perdidas noticiadas pela imprensa e não levam em conta outras situações. Em 2016, por exemplo, Ana Clara Quintanilha, de 2 anos e 7 meses, morreu em Bangu quando o carro onde estava foi atingido por outro veículo, que fugia de uma perseguição policial. No mesmo ano, na Rocinha, Jenifer Caroline Conceição Ramos, de 11 anos, faleceu com um tiro na cabeça disparado por um homem que mexia em uma arma em um ponto de venda de drogas na comunidade.
— Esse caso se configura como um acidente. Não havia intenção de matar. O contexto não era de tiroteio ou algo parecido – explica Costa — O levantamento não inclui casos como esse, assim como outros que envolveram execuções de criança ou outras circunstâncias. Nossa ideia é chamar a atenção para questão das mortes provocadas por trocas de tiros.
Famílias reclamam de falta de ajuda
Muitas vezes, o drama das famílias não termina com a perda da criança. Nos casos com participação de forças de segurança, vários familiares das vítimas se queixam de falta de ajuda por parte do governo do estado e têm dificuldade em obter na Justiça direitos básicos – como apoio psicológico, pensão e indenização por danos morais.
— Em regra, o Estado não dá suporte.Os ex-governadores Sergio Cabral e Luiz Fernando Pezão até prometiam essa ajuda às famílias em reuniões. Mas, nos últimos tempos, essas famílias têm ficado muito abandonadas, largadas à própria sorte – comenta João Tancredo, advogado que oferece ajuda gratuita às famílias de vítimas da violência há 30 anos.
Citada por Tancredo, a morte de Maria Eduarda Alves Ferreira, de 13 anos, aconteceu durante uma operação policial em Acari em 2017. Ela foi baleada durante uma aula de educação física. Um laudo pericial divulgado dez dias após a ação indicou que o tiro que matou a menina havia partido da arma de um PM. Entretanto, dois anos depois, o policial ainda não foi preso. De acordo com Uidson Alves, de 35 anos, irmão da jovem, o Estado não ofereceu qualquer tipo de ajuda nesse período:
— Em relação à indenização, por exemplo, é um jogo sujo o que acontece e um segundo crime que as autoridades cometem — diz ele — Destruíram não só a vida da minha irmã, mas de toda família. Minha mãe já se tratou com psicólogo, com psiquiatra e recebeu diagnóstico de distúrbio mental. Minha irmã do meio parou de estudar e começou a fumar. Eu mesmo recebi diagnóstico de depressão, choro sozinho às vezes e tenho sessões com a psicóloga duas vezes por semana.
Procurada, a Secretaria de Vitimização do governo do estado informou por meio de nota que foi criada em agosto de 2019 e atendeu todos os casos a partir desta data. “Nosso atendimento tem sido feito assim que recebemos a demanda; buscamos procurar a família e oferecer o que for necessário para esse momento tão difícil. Porém, estamos sempre buscando os casos mais antigos para saber sobre a situação em que se encontra e a necessidade de alguma ajuda. Estamos à disposição para ajudar qualquer família que nos procure, pois como somos uma secretaria nova ainda não conseguimos chegar a todos os casos passados”, afirma o texto.
Mães pedem providências em protesto no Palácio Guanabara
No começo da tarde desta quinta-feira, uma manifestação liderada por um movimento de mães com filhos que foram vítimas da violência no estado levou 16 camisetas manchadas de vermelho para a porta do Palácio Guanabara, em Laranjeiras. As blusas eram uma alusão aos 16 registros de crianças atingidas por balas perdidas no Rio em 2019. A conta não considerava o caso da menina Vitória Ferreira da Costa, de 11 anos, baleada quando voltava da escola no Morro da Mineira na última terça-feira. Com ele, já são 17 ocorrências do tipo neste ano.
Na Assembleia Legislativa do estado (Alerj), um debate com o tema “A morte de crianças e a política de segurança” foi realizado na tarde desta quinta. Nesta sexta-feira, a morte da menina Ágatha Félix, atingida quando estava dentro de uma kombi no Complexo do Alemão, completa uma semana.