Em 2020, o estado do Rio foi condenado em segunda instância a indenizar 81 pessoas por erros, crimes ou má conduta de policiais. Ao todo, 18 dos beneficiados são vítimas que foram feridas e conseguiram sobreviver e 63 são parentes de 23 mortos em ações de agentes de segurança no Rio — policiais militares, civis e inspetores penitenciários. Somadas, as indenizações arbitradas pela Justiça chegam a R$ 8,3 milhões — uma média de R$ 103.461 por pessoa.
Os dados fazem parte de um levantamento feito pelo EXTRA em acórdãos do ano passado de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio em ações indenizatórias movidas contra o estado por sobreviventes e parentes de vítimas fatais de ações policiais. Em 41 decisões, os desembargadores determinaram o pagamento de indenizações por danos morais e materiais. Em outras 18, os pedidos foram negados. Como algumas ações são movidas por famílias inteiras, cada decisão pode beneficiar mais de uma pessoa. Nesses casos, a Justiça discrimina o montante que cada parente tem direito a receber.
No último dia 12, a Prefeitura de Minneapolis anunciou que pagará uma indenização de US$ 27 milhões — o equivalente a R$ 150 milhões — à família de George Floyd como indenização pela morte do homem negro asfixiado durante uma abordagem policial. O montante acumulado das indenizações determinadas pela Justiça do Rio em 2020 a parentes e vítimas da polícia corresponde a somente 5% do valor que será pago à família Floyd — fruto de acordo extrajudicial que os parentes aceitaram para retirar o processo que moviam contra a cidade.
No Rio, a indenização mais alta arbitrada pela Justiça num caso de morte pela polícia no ano passado foi de R$ 400 mil. A mais baixa foi de R$ 30 mil para irmãos de um religioso morto em 2001 por PMs quando voltava para casa depois de um culto, em São Gonçalo, na Região Metropolitana. Na maior parte dos acórdãos analisados pelo EXTRA, os desembargadores alegam que, como as famílias das vítimas são pobres — em sua maioria, moradores de favelas —, indenizações altas configurariam “enriquecimento sem causa”. Para o advogado João Tancredo, especialista em ações do tipo, existe um preconceito dos julgadores na hora de indenizar vítimas de ações policiais:
— Mãe pobre não sofre menos que mãe rica. O poder financeiro da família não deveria entrar na conta. Não existe enriquecimento ilícito, já que a indenização é lícita.
Resgate em hospital motivou ação
Um terço do total das vítimas a que se referem os acórdãos foi baleado durante operações em favelas. Outros 26% foram atingidos em ações de patrulhamento ordinário. Também há casos de feridos em blitzes e até o de um paciente morto num tiroteio dentro do Hospital Souza Aguiar.
O segurança Ronaldo Marriel foi à unidade em busca de atendimento em junho de 2016. Quando ele entrava no hospital, criminosos invadiram o local para resgatar o traficante Nicolas Labre de Jesus, o Fat Family, que estava internado sob custódia. Houve tiroteio entre dois PMs que faziam a guarda do preso e o bando. Um tiro atingiu Ronaldo, que morreu, aos 35 anos.
Para a Justiça, a falta de planejamento da polícia custou a vida do segurança. Segundo escreveu o desembargador Wagner Cinelli em seu voto, o caso “revela a absurda situação de um destacamento ineficiente para o acautelamento de um traficante de grande porte e de um comando que, tendo conhecimento do plano de fuga, nada fez para impedir a ação criminosa”.
Para Maria Marriel, de 69 anos, mãe de Ronaldo, a indenização não diminui a dor pela perda do filho.
— É uma dor muito profunda. Não desejo que ninguém passe pelo que já passei.Um peso, duas medidas
Em todos os 18 processos em que indenizações foram negadas pela Justiça, as vítimas foram atingidas por “balas perdidas”, ou seja, eram inocentes que foram baleados em meio a tiroteios entre policiais e criminosos. Os inquéritos que investigaram os crimes não conseguiram determinar a autoria dos disparos. Com esse argumento, os desembargadores alegaram que o Estado não tem responsabilidade sobre as mortes.
A família do menino Luiz Felipe Paz, de 3 anos, morto em junho de 2014 no Morro da Quitanda por um tiro que o atingiu enquanto dormia em seu quarto, foi uma das que tiveram a indenização negada. Em seu voto, a desembargadora Odete Knaack alegou que, sem provas “de que o tiro que atingiu a vítima haja efetivamente partido da arma de fogo de um dos policiais, afasta-se um dos elementos essenciais para a caracterização do dever de indenizar”.
No entanto, outros processos parecidos tiveram decisões diferentes. É o caso da ação movida pela família de Maria Lúcia da Costa, morta em março de 2018, aos 58 anos, em meio a um tiroteio entre PMs e traficantes no Complexo do Alemão. A investigação não concluiu de onde partiu o disparo. A Justiça, no entanto, determinou que a família seja indenizada: “Mesmo no combate à criminalidade, por mais perigosa que seja a atuação administrativa, o Estado tem o dever de exercê-la com segurança, de modo a não causar dano”, escreveu o desembargador Maurício Lopes.
Indenização após chacina
O taxista Carlos Henrique do Carmo Souza não sabia direito o que sentir quando foi informado, em novembro do ano passado, que havia ganhado a ação indenizatória que moveu contra o estado. Ele é pai de Carlos Eduardo Silva de Souza, o Carlinhos, um dos cinco amigos fuzilados por PMs em novembro de 2015, na chacina de Costa Barros. Três PMs foram condenados a 52 anos de prisão pelos homicídios.
— O que eu mais queria era justiça para o meu filho. E isso eu tive quando os bandidos fardados foram condenados. Nenhuma indenização vai trazer meu filho de volta — diz Carlos.
Carlinhos tinha 16 anos quando foi assassinado. Na ocasião, ele voltava do Parque Madureira, aonde havia ido com os amigos comemorar o primeiro salário de um deles como jovem aprendiz.
Outra família que ganhou a ação que moveu contra o estado foi a do PM Fábio Mourão da Silva. Ele foi morto por policiais civis em 2012, ao ser confundido com um criminoso num banco no Centro do Rio. Ele estava à paisana no local para averiguar uma denúncia de que clientes estavam sendo extorquidos.
Apesar das vitórias em segunda instância em 2020, nenhuma indenização foi paga. Os pagamentos só são feitos após o trânsito em julgado dos processos, que ainda podem demorar alguns anos.