Por Rafael Soares – Extra – 07/04/202
Um ano depois das mortes do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, fuzilados por militares, em Guadalupe, na Zona Norte do Rio, a operação do Exército que culminou nos homicídios segue sob investigação. O Ministério Público Militar (MPM) levantou uma série de contradições e omissões nos dois depoimentos prestados pelos militares sobre a ação — que começou ainda na manhã do dia 7 de abril do ano passado com uma incursão dos homens do Exército na Favela do Muquiço.
Um Inquérito Policial Militar (IPM) ainda em andamento descobriu, por exemplo, que os militares que integraram a patrulha omitiram, no primeiro depoimento que prestaram, ao próprio Exército, que usavam um rádio transmissor apreendido com traficantes para monitorar as atividades dos criminosos na favela. O MPM citará as inconsistências nos relatos em suas alegações finais do processo que julga os 12 militares pelos homicídios de Evaldo e Luciano. Testemunhas e réus já foram ouvidos. A previsão da Justiça Militar é que a sentença saia ainda este ano.
Dez dos 12 réus no processo pelos dois homicídios participaram da incursão da parte da manhã, que ainda é alvo do IPM. Evaldo e Luciano foram baleados na parte da tarde, por volta das 14h30, quando a patrulha, após regressar ao quartel da ação na favela, saiu novamente da Vila Militar para levar quentinhas a um outro grupo de militares que permaneceu baseado próximo à Avenida Brasil após a ação da manhã.
Os militares deram depoimentos sobre a incursão à favela ao Exército, um mês após a operação, e, em dezembro do ano passado, à Justiça Militar, quando foram ouvidos no processo que julga os homicídios. No segundo relato, todos os militares que estiveram no Muquiço citaram a existência de um rádio transmissor dentro de um dos veículos blindados, usado para guiar a tropa e acompanhar os passos dos traficantes.
“De missões anteriores, o pessoal conseguiu apreender um radinho que é deles. Então, a gente fica com essa comunicação desse pessoal, a gente consegue ouvir o que eles tão falando. A todo momento eles vinham monitorando a gente”, contou o tenente Ítalo da SIlva Nunes, comandante da patrulha.
Nos depoimentos, os réus detalharam, inclusive, ameaças feitas pelos criminosos à patrulha via rádio. “Eu tava na viatura que tava transmitindo, e consegui escutar os traficantes falando da ordem, dizendo que o Coronel tava na comunidade e que a ordem dele era executar todo mundo do Exército que tava entrando na comunidade”, disse o soldado Gabriel da Silva de Barros Lins, se referindo a Bruno da Silva Loureiro, chefe do tráfico da favela.
Ao Exército, meses antes, nenhum dos militares fez referência ao rádio transmissor. No IPM, não há nenhuma informação sobre o aparelho. Não se sabe quando e como foi apreendido, quando os militares passaram a usá-lo e se o uso do aparelho foi aprovado pelo comando do quartel. “A referência a ‘rádio usado pelos traficantes’ apareceu apenas nos interrogatórios dos militares na ação penal referente ao evento da tarde do dia 07/04/2019, nada constando sobre o aludido rádio no IPM que apura os eventos da parte da manhã do dia 07/04/2019”, afirmou o MPM, em nota enviada ao EXTRA.
Outras contradições
Outras contradições foram notadas pelas promotoras que investigam o caso. O soldado Marlon Conceição da Silva, por exemplo, disse, quando depôs ao Exército, que não havia atirado, na parte da manhã, com o fuzil que portava. À Justiça Militar, ele afirmou que fez disparos com a arma na ação da manhã e à tarde. Alertado pelas promotoras quanto à contradição, o militar respondeu: “Eu não me recordo do depoimento, mas que eu atirei, eu atirei”.
Participaram da ação, que começou às 9h, um total de 29 militares, divididos em três viaturas blindadas. O objetivo da incursão no Muquiço, segundo os militares, era prover segurança para o Próprio Nacional Residencial (PNR), conjunto habitacional onde moram militares vizinho à favela. De acordo com os homens do Exército, ações no local eram corriqueiras, assim como tiroteios com traficantes. Nesse dia, eles alegam que foram alvo de disparos e chegaram a revidar os tiros. Por isso, no IPM, os militares são as vítimas e os investigados são traficantes que atacaram a patrulha. Na ação da manhã, não houve mortos, feridos nem apreensões de armas ou drogas.
Em dezembro do ano passado, o EXTRA mostrou que os depoimentos dos militares à Justiça sobre as mortes de Evaldo e Luciano apresentavam contradições entre si. Somente um dos acusados afirmou que houve uma tentativa de contato com o catador Luciano antes de a patrulha disparar contra ele disparos. Os demais militares alegam que o catador disparou contra os militares antes de ser abordado.
Os depoimentos dos réus também batem de frente com relatos de testemunhas que presenciaram a ação. Todas deram a mesma versão: os militares fuzilaram um carro com uma família dentro e, depois, mataram um catador de material reciclável em frente à mulher grávida. O relato dos militares é completamente diferente. À Justiça Militar, os réus afirmaram que reagiram a um assalto próximo ao Piscinão de Guadalupe e, 200 metros adiante, viram o carro com as portas já abertas, parado e crivado de balas. Eles reconhecem um dos assaltantes como o catador Luciano, que teria atirado na patrulha antes de ser baleado. Os militares negaram ter visto Evaldo e sua família no carro fuzilado.
Antes do julgamento, a defesa dos doze militares pediu à Justiça acesso ao Ford Ka branco que Evaldo dirigia quando foi morto. O advogados dos réus também pediu que fossem juntados no processo autos de uma investigação da Polícia Civil em que haveria “áudios e diálogos transcritos referentes ao suposto traficante Bruno da Silva Loureiro, vulgo ‘Coronel’ e, em especial, aqueles relativos ao dia 07/04/2019, travados entre os traficantes, que contenham ordens para atirar com arma de fogo contra militares”.
Viúva cobra pensão
Passados 12 meses do crime, a viúva de Evaldo, Luciana dos Santos Nogueira, de 42 anos, convive com dificuldades financeiras: os cerca de R$ 3 mil mensais que Evaldo ganhava como segurança de uma creche e tocando cavaquinho em eventos fazem falta no orçamento da mulher, que passou a ter gastos com o tratamento psicológico para ela e o filho Davi, de 8. Os problemas financeiros se agravaram em março, quando a técnica de enfermagem foi demitida de um dos dois empregos que tinha, num hospital.
Ela cobra na Justiça o pagamento de uma pensão da União a que tem direito. No último dia 4 de fevereiro, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região determinou o pagamento de R$ 2.348,84 mensais à mulher e ao filho. O valor corresponde a dois terços do que Evaldo ganhava quando era vivo. No final de março, a União depositou o valor referente a três meses de pagamento. A viúvatenta receber os valores referentes ao ano passado. Sua defesa pediu o bloqueio de R$ 14 mil da União, referentes ao valor.
— O Exército nunca me procurou. Não pediram nem desculpa, não quiseram saber como eu estava, como estava meu filho. Nada. Tivemos que entrar na Justiça para conseguir a pensão. Eu me sinto abandonada — conta Luciana.
Após o crime, a técnica de enfermagem e o filho trocaram a casa de dois andares em que moravam com Evaldo em Rocha Miranda por um pequeno apartamento de dois quartos num bairro próximo. A mudança foi provocada pelas lembranças que a casa provocava em Luciana, que morou ali com Evaldo por 20 anos.