Publicado no site da revista Época.
Por João Tancredo.
Os desserviços prestados por Jair Bolsonaro desde a campanha presidencial até o seu governo podem custar um retrocesso de décadas ao Brasil. A ordem expedida ao Ministério da Defesa para comemorar o golpe militar de 1964 exemplifica bem essa peregrinação para o atraso. A sociedade brasileira, em toda sua diversidade, precisa reagir.
Além de disputar a interpretação histórica sobre os anos de chumbo, é fundamental lutar contra o espólio deixado pelos militares que, até hoje, faz sangrar o povo brasileiro. Para os pobres, negros e periféricos a chegada da Constituição de 88 não interrompeu o cerceamento da liberdade, a censura, a tortura e as execuções promovidos arbitrária e cotidianamente por agentes do Estado.
Como advogado, atendo cotidianamente vítimas desse conflito sistêmico no Rio de Janeiro. Em geral, são pobres e parentes de civis e – é importante frisar – de militares em busca de reparação que, com sorte, levarão anos ou décadas para serem obtidas.
Foi durante a ditadura que as Polícias Militares (PMs) englobaram as Guardas Civis estaduais, foram retiradas do seu aquartelamento e enviadas às ruas para exercer com exclusividade o policiamento preventivo e ostensivo. Treinadas para a guerra e doutrinadas para a caça do “inimigo interno” forjado pela Guerra Fria, as PMs foram ordenadas a patrulhar o país sob rígida hierarquia desde o Comando do Exército – estrutura de comando que em grande parte está conservada pela Constituição de 88, fruto das barganhas negociadas pelos militares no período de transição.
Apesar de ajustes aqui e ali, a linha mestra das políticas de segurança no Brasil se manteve intacta de lá pra cá. Resultado: intensificou-se o cerco aos territórios habitados pelos pobres com o respaldo da guerra às drogas, cresceu exponencialmente a população carcerária, dispararam as estatísticas de homicídios e ninguém é capaz de defender que vivemos em cidades menos violentas.
Em paralelo, outra herança maldita da ditadura militar assombra o país: as milícias. O filme “Pastor Cláudio”, dirigido por Beth Formaggini e lançado esse ano, desenrola bem essa trama. A extensa conversa com o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Claudio Guerra, que ao longo da década de 1970 perseguiu, torturou e executou militantes de esquerda, revela como o know-how empresarial-militar adquirido na ditadura transformou-se em conluio de contraventores e paramilitares.
Controlando territórios, extorquindo comerciantes, aterrorizando concorrentes e executando desafetos, as milícias cresceram, já podem ser confundidas com o tráfico de drogas, movimentam o tráfico de armas, elegem políticos e habitam condomínios de luxo. Perdemos Marielle Franco e Anderson Gomes – com a segurança do Rio de Janeiro em plena intervenção militar – para esta estirpe de facção criminosa.
Com olhar histórico e crítico, relembrar o golpe de 1964 não é uma má ideia. Desde que isso sirva para combatermos as barbaridades gestadas à época e que se perpetuam até hoje. A tarefa é árdua e mesmo governos críticos à ditadura não quiseram ou não tiveram força para enfrentá-la como um todo.
Diante de um governo que exalta torturadores e delira em meio aos seus próprios fantasmas, cabe a todos os democratas redobrar a luta e recolocar os problemas reais dos brasileiros na ordem do dia.
João Tancredo é advogado e defensor dos direitos humanos.