Por Mariana Schreiber – BBC Brasil – 14/12/2020
A dor que fulminou a família de Rebecca e Emilly — primas assassinadas por um tiro de fuzil em 4 de dezembro enquanto brincavam em frente de casa, na comunidade do Barro Vermelho, em Duque de Caxias (RJ) — foi a mesma que desmoronou sobre Leandro Monteiro de Matos, pai de Vanessa Vitória dos Santos, morta em julho de 2017, com dez anos, ao ser baleada na cabeça dentro de casa na região conhecida como Boca do Mato, em Lins de Vasconcelos, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, durante uma operação policial.
Como no caso de Rebecca Beatriz Rodrigues Santos (7 anos) e Emilly Victoria da Silva Moreira Santos (4 anos), a morte de Vanessa provocou grande comoção, colocando pressão sobre a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro para esclarecer o caso.
No entanto, mais de três anos depois, ninguém foi punido pelo crime e Matos ainda não tem resposta sobre os responsáveis por retirar a vida de sua filha precocemente. Uma demora, diz ele, que torna seu sofrimento ainda pior.
“Eu entreguei na mão de Deus (a resolução do caso). Eu tenho esperança que seja resolvido, mas não estou muito confiante porque, infelizmente, pra pobre e favelado não existe Justiça”, afirmou à BBC News Brasil.
Para o pai de Vanessa, a falta de resolução e punição para a morte de sua filha e inúmeros casos semelhantes ao dela alimentam a repetição desses assassinatos. Somente em 2020, outras dez crianças de até 14 anos além de Rebecca e Emilly morreram baleadas no Estado do Rio de Janeiro, segundo monitoramento da organização Rio de Paz.
“Eu fico muito triste com isso (a morte das duas primas). Porque se lá atrás, quando eu pedi (por punição), se tivessem feito o que eu tava pedindo, e que outros pediram antes de mim, teria evitado de acontecer”, lamenta ele.
“Eu sou criado em comunidade. Infelizmente, veio a acontecer com minha filha, mas já vi acontecer com várias outras pessoas e ninguém saber (quem são os culpados). O parente vai, faz o sepultamento do parente falecido, e acabou”, revolta-se.
Vanessa foi baleada ao chegar em casa da escola, numa tarde de terça-feira, 4 de julho de 2017. Segundo parentes que estavam presentes, policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Camarista-Méier invadiram a residência para atirar contra traficantes. Um inquérito da Polícia Civil investiga o caso, mas até hoje não foi concluído.
O abandono do caso de Vanessa não é exceção no Rio de Janeiro, Estado que resolve apenas 11% dos casos de homicídio, segundo a edição deste ano do estudo Onde mora a impunidade, da organização Sou da Paz, que analisou homicídios ocorridos em 2017 e esclarecidos até dezembro de 2018.
Ou seja, no Rio de Janeiro, a cada cem assassinatos no ano da morte de Vanessa, apenas onze haviam gerado uma denúncia criminal pelo Ministério Público até o fim do ano seguinte — o pior resultado entre onze estados que disponibilizaram dados para o estudo (AC, DF, ES, MT, MS, PA, PE, RJ, RO, SC, SP).
No entanto, mesmo os casos em que há denúncia criminal costumam se arrastar na Justiça, aumentando a insatisfação das famílias, disse à BBC News Brasil o defensor público Fábio Amado, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria do Rio.
“Essa demora faz perdurar o luto, o sofrimento das famílias. A Justiça precisa ser, claro, eficiente, correta, mas tem que ser rápida também. Porque, quando ela demora demais, faz nascer dentro das famílias um sentimento de injustiça”, nota ele.
Segundo Amado, a Defensoria dá suporte às famílias tanto em ações civis, que buscam reparação com apoio psicológico e reparação financeira, quanto nos processos criminais. Ele diz, porém, que a maioria busca a punição penal.
“Em regra, a família tem mais interesse na esfera criminal. O sentimento de justiça caminha muito por uma responsabilização criminal do autor ou autores dos disparos”, ressalta.
Polícia tem baixa capacidade de investigação
Assim como o pai de Vanessa, a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, também considera que a baixa resolução dos homicídios no Rio contribui para que os assassinatos se repitam.
“A punição tem um impacto dissuasório ao desbanalizar esse crime. Mas não se trata apenas de ficar colocando homicida na cadeia, é porque um bom esclarecimento produz dados melhores sobre as dinâmicas de homicídios importantes para que se possa fazer melhores políticas de prevenção também”, defende.
“Além de garantir o direito na Justiça à verdade, à memória para as famílias das vítimas”, acrescenta.
Ela diz que é fundamental aumentar a capacidade de investigação da Polícia Civil, ampliando a qualificação dos agentes e dando mais instrumentos para produção de provas periciais, como a análise rápida da cena do crime. “As primeiras 24 horas, 48 horas, são muito importantes para a elucidação do homicídio”, destaca.
No caso de uma pessoa morta baleada, a atuação da perícia busca elucidar, por exemplo, a trajetória do projétil que atingiu a vítima, para descobrir de onde partiram os tiros. Caso a bala seja encontrada, é possível realizar um exame de confronto balístico para identificar de qual arma o tiro foi disparado.
De acordo com o defensor Fábio Amado, o exame inicial do crime produz um “laudo de exame local”. É um exame que depois deve ser complementado com mais profundidade pela reprodução simulada dos fatos, prova pericial mais conhecida como reconstituição do crime.
Considerada etapa fundamental numa investigação penal, a reconstituição não foi feita no inquérito que investiga a morte de Vanessa, afirma seu pai.
“A reprodução simulada dos fatos não acontece em todos os processos, mas ele é crucial. É um procedimento que demanda às vezes um efetivo grande de peritos, agentes, muitos servidores públicos”, nota Fábio Amado.
“Isso (a realização da reconstituição) varia de acordo com o delegado que está presidindo o inquérito, a delegacia onde corre, a existência de peritos para acompanhar e executar esse tipo de diligência, mas a mídia tem um papel crucial em levar adiante esses fatos, porque, a partir de uma grande visibilidade e repercussão, nos percebemos que as reproduções costumam ser feitas”, acrescentou.
O assassinato de João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, ocorrido durante operação policial em maio no complexo de favelas do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, por exemplo, teve a reprodução simulada dos fatos realizada em 29 de outubro, demora atribuída à pandemia de coronavírus.
A reconstituição do crime contou com cerca de 20 policiais, dez testemunhas, além de peritos e investigadores da polícia e do Ministério Público estadual, segundo o portal G1. Também foram usados na reconstituição um blindado e um helicóptero da Polícia Civil — após ser baleado, João Pedro chegou a ser levado de helicóptero pela polícia e a família ficou horas sem notícias dele.
Parentes e amigos de João Pedro que estavam presentes no momento de sua morte dizem que agentes entraram na casa atirando e balearam o menino. A versão da polícia é de que traficantes pularam o muro da residência e o menino foi atingido durante confronto.
O caso é exemplar de irregularidades comuns em investigação de mortes de pessoas baleadas nas comunidades do Rio. Como diversas vezes a polícia está envolvida, nota Carolina Ricardo, é frequente que policiais, ao invés de preservar o local do crime, removam o corpo da vítima e tentem destruir provas.
No caso de João Pedro, como ele foi baleado em órgãos vitais, é provável que já estivesse morto quando foi levado de helicóptero, avalia a Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O órgão questiona também o fato de três granadas (não detonadas) que os policiais que participaram da ação apresentaram como prova de que os traficantes entraram na casa terem sido periciadas pelo Esquadrão Antibombas da Core (órgão do qual fazem partes policiais que estavam na operação) e depois terem sido destruídas.
Testemunhas amedrontadas
Com a baixa capacidade de investigação, a prova mais comumente utilizada pela polícia no Brasil é a colheita de depoimento de testemunhas, afirma Carolina Ricardo. Ela diz que mesmo esse tipo de investigação precisa ser melhorada, pois muitas vezes a testemunha não se sente segura em falar.
Esse problema também foi enfrentado pelo pai de Vanessa, que conta ter tido medo de ser morto devido a sua insistência em cobrar justiça pelo assassinato de sua filha.
Matos disse à reportagem que foi interrogado como se tivesse responsabilidade pelo ocorrido, porque a criança estava sozinha na casa no momento em que a polícia invadiu a residência — ela entrou para trocar o sapato pelo chinelo antes de ir para a casa de sua madrinha, vizinha à dela.
“O que eles fizeram (no inquérito) foi interrogar os parentes que estavam presentes, minha nora, a madrinha (da Vanessa). Me chamaram também, nem presente eu tava (no momento da morte) e tive que ir na DH (Delegacia de Homicídios) duas vezes. Horas e horas e horas e, mesmo na presença de advogado, eles não respeitam nem a dor da pessoa”, contou.
“Eu na época estava morrendo de medo porque eu estava dando muita entrevista”, lembrou também.
Leandro Matos tem sido assessorado pelo escritório do advogado João Tancredo, conhecido por atender famílias pobres vitimadas pela violência policial. Ele diz que, independente de onde partiu o tiro que matou sua filha, o Estado tem responsabilidade pelo crime.
“O fato do Estado estar presente dentro da casa, porque a polícia é do Estado e inclusive um dos policiais estava impedindo a saída da minha filha na hora que a madrinha estava chamando, então o Estado é culpado de qualquer forma. Quem colocou o policial lá dentro foi o Estado”, afirma Matos.
Enquanto sofre aguardando por justiça, ele se agarra às memórias boas da filha. “Não tem um dia da minha vida que eu não penso na minha filha. Eu guardo aquele sorriso dela. Eu procuro pensar nas coisas boas que ela me proporcionou”, contou, emocionado.
A BBC News Brasil questionou na sexta-feira (11/12) a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro sobre a lentidão no esclarecimento do homicídio de Vanessa, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.
‘Balas perdidas que encontram corpos negros’
Carolina Ricardo diz que diversos fatores explicam o resultado do Rio de Janeiro no levantamento sobre resolução de homicídios na comparação com outros Estados: além da falta de capacidade da Polícia Civil para investigar, ela aponta a “bagunça administrativa” e a crise fiscal do Estado. Ela também afirma que parte das forças de segurança está corrompida, atuando na criminalidade como milícias em diversas comunidades.
Segundo a diretora do Sou da Paz, mudar esse quadro exige vontade política e gestão estratégica do governo estadual. Para ela, porém, o Rio de Janeiro foi na direção contrária nos últimos anos, na gestão do governador Wilson Witzel (atualmente afastado, enquanto enfrenta um processo de impeachment).
No ano passado, ele extinguiu a Secretaria de Segurança Pública e a gratificação para policiais cujos batalhões reduzissem as mortes provocadas durante operações policiais.
Na sua avaliação, o fato de esses assassinatos ocorrerem muitas vezes de “bala perdida” não impede que investigações identifiquem a responsabilidade do crime.
“Essas balas não são perdidas, elas saem de uma determinada arma e elas atingem sim os corpos que a gente conhece. A foto das crianças assassinadas baleadas no Rio mostra que são crianças negras, um perfil específico. Isso é muito grave”, critica.
A diretora do Sou da Paz considera que o perfil das vítimas influi na baixa resolução dos casos, devido à “seletividade” da Justiça brasileira.
“Existe uma seletividade no sistema de segurança pública e de Justiça criminal. Uma pessoa branca possivelmente seria morta num outro contexto, num assalto, até o local onde ela morre facilita a preservação da cena do crime porque tem menos forças ilegais circulando ali, sejam as policiais, sejam do tráfico. E você tem uma pressão pública (cobrando a resolução do caso), uma pressão financeira das famílias das vítimas, vozes que falam mais alto no debate público, são mais ouvidas”, acredita.
“Já as vítimas nas comunidades são corpos e grupos que são considerados mais matáveis. Parte da opinião pública acha que, porque estava na favela, é traficante, tem que morrer mesmo. O fato de essas pessoas serem consideradas matáveis e suas vozes não serem tão ouvidas é fruto do racismo estrutural e impacta no rumo do nosso sistema de Justiça”, reforça.
Investigação das mortes de Rebecca e Emilly
O assassinato de Rebecca e Emilly está sendo investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense. Foram apreendidos fuzis e pistolas de cinco policiais que estavam na região do crime, para realização de confronto balístico. Avó de Rebecca e tia de Emilly, Lídia da Silva Moreira Santos disse que viu policiais atirarem da viatura em direção à rua.
Já a Polícia Militar afirma que uma equipe do 15º Batalhão (Duque de Caxias) fazia patrulhamento na rua Lauro Sodré, na altura da comunidade do Sapinho, quando foram ouvidos disparos de arma de fogo. Segundo a nota da corporação, “não houve disparos por parte dos policiais militares”.
Em protesto no sábado 6 de dezembro, Alessandro dos Santos, pai de Emilly, cobrou punição. “Que esse policial possa pagar diante da justiça dos homens e diante da justiça de Deus. Não desejo que ele passe pela dor que eu estou passando nesse momento”, disse durante o ato, segundo o jornal Extra.